O temor reverencial

As Forças Armadas não precisam de ser ‘temidas reverencialmente’, até porque em democracia não há condições para ‘golpes militares’

Um dos traços dos portugueses que mais me têm intrigado na minha (já longa) existência é a tendência para se tratarem algumas instituições – e, em especial, os seus chefes – com grande ‘temor reverencial’.

Ora, temor reverencial não significa respeito nem consideração.

É uma atitude preocupante, sobretudo porque não corresponde a um sentimento genuíno – sendo mesmo, na maioria das vezes, de duvidosa verdade, depreciativo, muitas vezes cínico e frequentemente hipócrita.

É assim no relacionamento entre o poder político e a instituição militar. 

Elogia-se publicamente, para depois se criticar em privado.

Os portugueses não devem ter temor reverencial pelas suas Forças Armadas e respetivos chefes.

Podemos ficar todos tranquilos que não há (em democracia) condições para ‘golpes militares’.

As Forças Armadas não precisam de ser ‘temidas reverencialmente’.

Para ser respeitada, a instituição militar tem de se dar ao ‘respeito’.

Para ser considerada, a instituição militar – como pedra basilar do Estado de Direito Democrático – tem de compreender e aceitar que deve ser escrutinada em permanência.

O que se tem passado nas FA – e, em especial no Exército – leva-nos a fazer este reparo, que reputo essencial para que, de uma vez por todas, se apurem verdades e responsabilidades, terminando com a impunidade existente.

De uma vez por todas, o Exército deve restringir-se ao cumprimento escrupuloso das missões que lhe são cometidas pelo poder político, aquele que desfruta da legitimidade conferida pelo voto dos cidadãos.

Deve deixar de se considerar o detentor exclusivo das virtudes, e abandonar a convicção perigosa – mas muito enraizada e sobejamente difundida internamente – de que só ele sabe definir o que é o ‘interesse nacional’.

A existência de um temor reverencial, que não tem qualquer justificação, não pode impedir os decisores políticos, sejam eles quem forem – Governo, oposição e Presidente da República – de objetivamente se relacionarem com as FA do modo e com o método que o crítico momento requer e justifica.

Será, com toda a certeza, muito difícil prosseguir um caminho de recuperação do prestígio e do bom funcionamento da instituição militar se tal não acontecer.

Os portugueses defendem as suas FA… só não percebem o que está a passar-se e querem saber ‘a verdade’.
Não confundamos as instituições com aqueles que, momentaneamente, as comandam, dirigem ou chefiam.

Assim foi no último fim de semana em Cascais, onde milhares de pessoas participaram nas atividades do Festival Militar   ali organizado, numa colaboração entre a Câmara Municipal e o Estado-Maior-General das Forças Armadas, onde só faltou Azeredo Lopes (o ministro da Defesa) vá lá saber-se porquê… No entanto, a sua ausência permitiu um ambiente mais autêntico e salutar, ainda que não completo – pois estava lá (na 1.ª fila) um ‘fardado cinzento’ que devia ter vergonha e… ir para casa.

Como diz a sabedoria popular, ‘perante a gangrena que está instalada e avança, há que sangrar até sair sangue bom’.

Para mim, é também evidente que, nas atuais circunstâncias, torna-se absolutamente necessário colocar a ‘pedra de fecho’ na estrutura superior das FA, e reajustar e consolidar a respetiva ‘pedra angular’.

Um chefe de Estado-Maior de um ramo das FA é um ‘administrador de recursos’ e não um ‘comandante’, no sentido rigoroso e restrito do mesmo.

Assim foi sempre, só que nos últimos tempos, procurando atingir um objetivo deslocado, inoportuno e propiciador de confusões, alguns chefes militares passaram a designar-se por ‘comandantes’, desvirtuando (por impossibilidade de o serem na verdade) o termo e a função. 

A esta situação acresce uma prática diária de sectarismo autista e corporativo, elitista, provocador e manifestamente depreciativo dos que não são do seu ‘clube’.

O chefe militar fica assim isolado, torna-se prepotente, autossuficiente e ‘glorioso’, o que o conduz a um estado de impunidade que o eleva ao ‘Olimpo’ da estupidez humana. 

Para além disto, defendo há muito tempo que só deve haver um comandante e interlocutor das FA junto do poder político (o CEMGFA), que deve ser o único general de quatro estrelas.

As funções dos chefes militares dos ramos devem ser reduzidas, confinando-se cada um à administração do seu ramo respetivo, como adjunto do CEMGFA.

Devem deixar de ser generais com quatro estrelas, passando a ter três estrelas douradas.

Para quem está pouco familiarizado com estes assuntos, pode parecer apenas uma questão de cosmética. Mas não é.

O facto de os decisores políticos fruírem de quatro interlocutores permite que parte deles – políticos e militares – passem os mandatos entre os ‘pingos da chuva’. 

Aos decisores políticos exige-se, hoje mais do nunca, que tenham olhos para ver, ouvidos para ouvir, inteligência para discernir, mas – acima de tudo – ‘coragem para decidir’.

Voltarei a este tema. 

*Major-General Reformado