José González Castillo era um anarquista convicto. No dia 6 de agosto de 1906, dirigiu-se a um notário para registar o seu filho recém-nascido. Foi praticamente corrido a pontapé. O tabelião ficou furibundo quando lhe pediu para oficializar o nome de Descanso Dominical González Castillo. José teve de voltar no dia seguinte, ligeiramente mais prosaico: optou por Ovídio Catulo. Sempre abrangia muita da poesia romana.
Claro que com o feitio que tinha, Castillo não aguentou muito tempo numa Argentina de convulsões sociais, entalada entre as presidências de Manuel_Quintana e José Figueroa Alcorta. Por isso, o jovem Ovídio Catulo passou a sua infância em Assunção, no vizinho Paraguai. Quando regressou a Buenos Aires filiou-se no Partido Comunista e dedicou-se ao boxe. E foi campeão de pesos-pluma. Além de compositor de tangos. Uma alma ampla.
«Pasará un milenio sin que nadie/repita tu proeza/el pase de taquito o de cabeza/Y todo lo hacía con elegancia de bailarín»: é assim que vai a letra de uma das suas milongas. Dedicada ao_Saltarín Rojo. «Um artista de circo. Um artista. Perdão, um grande artista! Nunca vi outro assim», disse um dia Alfredo Di Stéfano.
Saltarín Rojo é uma expressão do quilé. Faz lembrar o Pimpinela Escarlate, da Baronesa de Orczy. Percy Blakeney e a Revolução Francesa. O Bailarino Escarlate? Sim, por que não? Embora essa fosse somente uma das suas infinitas alcunhas: El Paraguayo de Oro, El Hombre de Mimbre, El Hombre de Goma, El Semillero de Avellaneda, El Mago, El Aviador, El Duende Rojo, El Diablo Saltarin, El Rey Del Gol, El Hombre de Plástico. Ufa! Esgotou imaginações.
Ovídio Catulo já tinha deixado Assunção quando nasceu Arsenio Pastor Erico Martinez. E estava em Buenos Aires quando, em maio de 1934, o bailarino se estreou pelo Independiente, em Avellaneda, contra o_Boca Juniors. Tinha 19 anos.
Com Erico, o malabarista, o Independiente foi campeão dois anos consecutivos. A sua linha avançada podia recitar-se como uma balada: José Vilariño, Vicente de la Mata, Arsenio Erico, Antonio Sastre e Juan José Zorrilla.
Não eram apenas os quarenta e tal golos por época do Bailarino Escarlate que deixavam os espetadores presos às bancadas, com uma baba escorrendo pelos queixos, salivando por mais. Era a forma como os marcava. Quando o viu saltando na área adversária como um cabrito, esticando as pernas para um pontapé de bicicleta irrepetível, o poeta, dramaturgo e novelista francês Paul Morand exclamou: «Mais, ça c’est Nijinski!!!». Tanto o paraguaio como o russo estavam-se nas tintas para a lei que exige matéria atrair matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado da distância. Que se lixasse o Newton.
El_Hombre de Goma pinchava em todas as direções e sempre nas mais inesperadas. Ia ao encontro da bola com uma sofreguidão de Pantagruel e Gargântua misturados. Os seus movimentos de acrobata faziam comichões no sangue. E eram de provocar aneurismas, como diria o Alencar do bendito Eça. De cada vez que espreitava o momento de um gesto ginasticado, ouviam-se gritos de expectativa. Depois transformavam-se ou em suspiros de admiração ou em vozearia de conversas que procuravam encontrar palavras para descrever tamanhas maravilhas. Finalmente, de braços no ar, Arsenio Pastor ouvia uma música de fundo: «Estás en mi presente sin convenio/fabuloso señor de la belleza/saltando al sueño que en tu gracia empieza/ y ardiendo en la gambeta de tu ingenio… /¡Angel alado!».
Os meniscos viriam a trair cobardemente o contorcionista de Assunção. Os joelhos fartaram-se de ser testados como suspensões de automóveis num caminho esburacado e pedregoso. Cada queda, cada aterragem, cada pouso, era um peso insuportável sobre os seus tendões esgaçados. Ninguém tem o segredo de voar sem sofrer as consequências. Nem Vatslav Fomitch Nijinski que se casara ali mesmo, em Buenos Aires, com a bailarina Romola de Pulszkie antes de se deixar aprisionar pela esquizofrenia.
O uruguaio Eduardo Galeano escreveu sobre o_Bailarino Escarlate: «Él tenía, escondidos en el cuerpo, resortes secretos. Saltaba el muy brujo sin tomar impulso, y su cabeza llegaba siempre más alto que las manos del arquero, y cuando más dormidas parecían sus piernas, con más fuerza descargaban de pronto latigazos al gol». Antes do fim, ainda jogou no Nacional de Assunção. E outra vez na Argentina, no Huracán. Mas já não tinha asas. Deus deixara cair o anjo.
Se era preciso medir-lhe a largura do sofrimento, uma trombose condenou-o a viver o últimos anos sem a perna esquerda. É possível amputar mais brutalmente um bailarino, tenha ele a cor que tiver? Escarlate ou não. Ficou parado, à espera da morte, o inquieto perpetrador dos mágicos saltos. Escutando, ao longe o poema de Héctor Negro: «Bailarín de leyenda al que amó la gramilla/Y el pajáro redondo que te prestó las alas/rompe todas las redes y al vuelo le hace astillas».
afonso.melo@newsplex.pt