Mesmo antes da estreia, 3 Mulheres já estava a dar cartas com uma nomeação para a 32.ª edição dos Prix Europa, na categoria de Melhor Série de Ficção. O prémio foi conquistado por uma produção belga, mas a vitória de uma nomeação antes da estreia já ninguém lhe tira.
A série de treze episódios que estreou na passada sexta-feira às 22h30 na RTP é uma ideia original de Fernando Vendrell e Elsa Garcia e realizada por Fernando Vendrell. Centrada nas vidas de Vera Lagoa, Natália Correia e Snu Abecassis, abrange a totalidade da década de 60: a trama inicia-se em 1961 e prolonga-se até 1973, do início da
Guerra Colonial à véspera da Revolução de Abril. A partir da vida destas mulheres, compõe o retrato de uma sociedade que está ainda tão perto, mas já tão distante.
Nas páginas seguintes trazemos um perfil destas mulheres especiais traçado a partir do entedimento das três atrizes que agora lhes dão vida no ecrã: Maria João Bastos, Soraia Chaves e Victoria Guerra.
Maria Armanda Falcão / Vera Lagoa por Maria João Bastos
"Defendeu as suas posições com enorme coragem"
Vera Lagoa e Maria Armanda Falcão eram personalidades assim tão distintas? «Na verdade não existiam grandes diferenças, eram a mesma mulher com a mesma personalidade forte e a mesma coragem reconhecida por todos», considera Maria João Bastos, que se congratula de ter tido vários meses para perceber quem foi, de facto, esta mulher tão peculiar, nascida no dia de natal de 1917, em Moçambique, e que durante décadas marcou a sociedade portuguesa.
Chegada à metrópole aos 16 anos, Maria Armanda opõe-se o Estado Novo, ajudando os presos políticos e apoiando a candidatura de Humberto Delgado. Começa a trabalhar muito jovem, primeiro como secretária, sem nunca perder de vista desejo de ser jornalista.
O grande público já a conhecia – em 1957 tornou-se a primeira locutora de continuidade da RTP -quando o Diário Popular, sabendo que era uma mulher «sem papas na língua», a contrata em 1965 para escrever crónicas e lhe pede para adotar o pseudónimo de Vera Lagoa. «Essa ‘persona’ foi construída de uma forma muito sábia e acabou por se tornar numa personagem icónica e marcante daquela época», diz Maria João Bastos, que ficou com a sensação de que Maria Armanda Falcão se «divertia muito com a Vera Lagoa». «Foi sob o nome de Vera Lagoa que ela começou a trabalhar como jornalista, realizando assim o seu sonho». Na época marcelista é já uma figura pública amplamente reconhecida, até porque a ela se deve a organização dos primeiros concursos de Miss Portugal.
No período pós-25 de Abril, afirma-se de direita e funda O Diabo, onde será impedida de entrar pelo Conselho da Revolução, altura em que lança o semanário Sol, cujas instalações são vítimas de um atentado. Ainda há de ser uma das diretoras de O País e colabora com O Tempo.
Durante a sua carreira jornalística teve não só que lutar pelo reconhecimento profissional como foi levada a tribunal várias vezes. E sofreu incontáveis pressões. Maria João Bastos reconhece-lhe fibra. «A verdade é que desfez hierarquias, sempre defendeu as suas posições com uma enorme coragem e correndo grandes riscos. Sofreu vários atentados à bomba e ameaças de morte e nada a deteve. Era uma mulher apaixonada pela liberdade e lutava por ela e pelo seu país», afirma a atriz.
Por isso, por ter começado a trabalhar tão jovem e por ter tido sempre os mesmos direitos e deveres que um homem, «dizia que se sentia uma mulher realizada e nunca se sentira inferior a nenhum homem». nota Maria João Bastos, que cita uma frase da jornalista: «Se os homens podem fazer manifestações , nós mulheres também podemos… há que denunciar situações erradas que prejudicam muito o país que é de todos nós».
Casou três vezes: a primeira com José Rebordão Esteves, depois com José Manuel Tengarrinha (interpretado na série por Afonso Lagarto) e finalmente com Francisco António de Gusmão Fiúza. E era considerada uma das mulheres mais bonitas de Lisboa. «Claro que ela tinha consciência da sua beleza e de como isso intimidava os homens mas ela também sabia que tinha outras armas que eram mais eficientes e mais fortes, e há na série uma cena que retrata muito bem isso», nota a atriz.
Neste processo de unir os pontos, a família da jornalista foi, diz Maria João Bastos, fulcral, porque além das histórias, forneceu «documentos, fotos e entrevistas que ajudaram muito». «Conversei muito com o sobrinho com quem ela tinha uma relação muito próxima, o Carlos Piçarra, e também com a nora. A ajuda deles foi fundamental para que mergulhasse no seu universo e a conhecesse de uma forma mais genuína e mais íntima». O grau de intimidade foi tal que emprestaram até à atriz «vários objetos pessoais», que foram usados na série. «Foi muito bonito, sentia uma energia muito forte quando vestia as roupas dela e usava as suas joias, e foi também uma bonita homenagem que lhe fizemos», diz Maria João Bastos que, por estes dias, está no Brasil em trabalho. Um desses exemplos é um vestido que Vera Lagoa usou no São Carlos, cena agora recriada na série da RTP. Maria João até sabe a história da peça: «O vestido foi feito por uma senhora que fazia tudo em tricô, muito conhecida de Lisboa. Ela fez o vestido para que a Vera Lagoa o usasse numa das suas idas ao S. Carlos». É a história a saltar para a ficção.
Natália Correia por Soraia Chaves
"Nem sempre era terrena no seu absoluto"
Quando começou a ouvir pessoas que privaram com Natália Correia, Soraia Chaves chegou a uma conclusão: toda a gente tinha uma opinião muito forte, «muito bem desenhada». «A Natália era isto, a Natália era aquilo». Por isso, às tantas, a atriz sentiu que estava a ser influenciada por esses olhos dos outros e deixou de querer ouvir o que as pessoas achavam dela. «Preferi despir-me disso e desvendar eu, através do trabalho dela, através daquilo que eu via até em fotografias antigas, quem era a Natália. Tentei focar-me no seu íntimo, naquilo que ela se calhar não revelava tanto, concentrei-me muito na poesia dela para tentar descodificar o seu pensamento. Fui mais por aí do que a imagem que a maioria das pessoas tem. E a ideia que as pessoas têm hoje em dia gravada na memória é de uma Natália já numa fase posterior à que nós retratamos na série, dos anos 80 e 90, a Natália do Parlamento», explica Soraia Chaves.
Até porque a poetisa, diz a atriz, tinha uma multiplicidade de Natálias em si. «Há uma particularidade da Natália que toda a gente deve conseguir adivinhar: ela não era uma só mulher, era muitas mulheres, tinha um universo gigante dentro dela». Dentro desse universo, Soraia Chaves deparou-se com uma pessoa «muito complexa e com facetas muito fortes e distintas». «Tinha o lado poético e sonhador, naturalmente que o revelava através da sua poesia mas também pela forma livre como vivia». Uma escolha que Soraia Chaves, que lhe reconhece uma «enormíssima dimensão», aplaude – até porque se revê. «Consigo identificar-me com essa urgência ou necessidade natural que ela tinha de ser livre e com o facto de tentar trazer a poesia para a sua vida, de nem sempre ser terrena no seu absoluto».
A poetisa e escritora – que foi também editora, jornalista e deputada, primeiro pelo PSD, depois como independente pelo PRD – nasceu nos Açores, em São Miguel, na Fajã de Baixo, em 1923. Saiu da ilha com 11 anos, para encher Lisboa com as suas famosas tertúlias intelectuais e políticas. Um verdadeiro aquário de idealismo, corrente tão cultivada pela escritora, que fazia o papel de mestre de cerimónias.
Para construir esta visão de Natália – uma mulher teatral, que «tinha uma ligação à estética muito evidente», que «parecia viver dentro de um quadro», sempre com o seu risco preto, com as suas roupas sui generis e a sua voz poderosa, que «mastigava muito bem as palavras, não deixava cair uma sílaba» e tinha na sua boquilha uma amiga fiel de todas as horas – a atriz preparou-se de uma maneira atípica. Além de mergulhar na sua obra, e uma vez que a poetisa era dada à astrologia, resolveu elaborar um mapa astral de Natália Correia. «Ela era muito ligada aos astros, na série também retratamos essa faceta, e achei que seria muito interessante descobrir alguns traços dela através das artes. Por exemplo o facto de eu ter dado esse passo, depois também fiz a minha carta astral, fez-me começar a abrir o meu campo de visão para uma possibilidade de um olhar do mundo diferente do meu», relata.
Para Soraia Chaves, Natália Correia, «mais do que feminista, foi humanista». «Mas dava muito voz à questão do sagrado feminino, acreditava nisso, nessa força que evidenciava tanto nas suas poesias como na sua forma de estar».
Uma forma de estar livre e, por ser tão diferente, polémica. «Ela tinha um jeito de ser livre no sentido de nunca se entregar, não se resignar e não perder o lado lúdico da vida. Dizia uma coisa a que achei muita graça: ‘A partir de hoje, se alguém me quiser encontrar, que me procure entre o riso e a paixão’. E acho que isso define muito a sua forma de liberdade. Ela era uma boémia, como se costuma dizer. Penso que apreciava a criatividade que surge da liberdade».
Snu Abecassis por Vitória Guerra
"Era uma mulher pragmática mas também muito sonhadora"
Victoria Guerra nem se lembra da primeira vez que ouviu falar de Snu Abecassis. «Lembro-me de crescer a ouvir falar no nome de Snu, a mulher de Sá Carneiro».
A mulher de Sá Carneiro nasceu Ebba Merete Seidenfaden, em Copenhaga, a 7 de outubro de 1940. Assentou arraiais em Lisboa em 1962, já casada com o advogado Vasco Abecassis, que conheceu na escola Michael Hall, em Inglaterra.
Antes da história de amor com Francisco Sá Carneiro, que lhe selaria tragicamente o destino no desastre de aviação de Camarate – a 4 de dezembro de 1980, em que Snu, Sá Carneiro e outras cinco pessoas perderam a vida -, já desbravava com as Publicações D. Quixote, editora por ela fundada na Primavera de 1960, o basto danado da iliteracia e da censura. Para a cosmopolita Snu, que não tinha sido educada sob os ditames de nenhuma religião, a D. Quixote era uma forma de agitar o marasmo e abrir, pelas mentes, as fronteiras do país. Afinal, este foi o quinto país que habitou: viveu na Dinamarca, Suécia, Inglaterra e Estados Unidos. Cresceu numa família de jornalistas e editores, num ambiente intelectual onde os problemas económicos não faziam parte do léxico – nem o conservadorismo. Uma vida que deixou Victoria Guerra surpreendida. «Tudo me surpreendeu. É tão bom quando assim é. Ter encontrado na palavra impressa a sua forma de participar e lutar por uma sociedade mais justa e equilibrada».
Se percorrer a obra que edificou é simples, a atriz admite que não foi fácil obter fontes documentais que lhe permitissem chegar à essência de Snu, mas diz que no processo de construção da personagem contou com a «ajuda preciosa da Inês Castel-Branco, que estava na altura a preparar a mesma personagem e tinha muitos documentos históricos, dos autores da série». Depois, alguns amigos passaram-lhe contactos de «pessoas que privaram com ela em diferentes ocasiões, como um casal amigo da família Abecassis que frequentava os jantares dados na casa destes». Dos amigos com quem teve oportunidade de conviver, a atriz destaca dois: Virgínia Caldeira, secretária de Snu na D. Quixote e amiga, e Dennis Redmont, jornalista e correspondente da Associated Press destacado em Portugal entre 1965 e 1967 – «altura em que foi convidado a sair do país» – e que também se tornou amigo da editora. «Foram conversas muito importantes para perceber quem era esta mulher discreta mas com ideias muito fixas, como era o seu trabalho na D. Quixote e fora dela e acima de tudo o que motivou esta mulher estrangeira a desafiar as leis do Estado Novo», resume Victoria Guerra.
Também a sua vida pessoal foi uma pedrada nos brandos costumes. Dar entrada a um processo divórcio não anda nunca arredado de uma certa coragem. Fazê-lo nos anos XX, sendo mulher, mãe de três filhos e para assumir uma relação com uma figura de proa da política denota ainda mais nervo. A história dos dois – curiosamente, apresentados em janeiro de 1976 por um cupido chamado Natália Correia – foi tão peculiar que chegou a ser matéria da norte-americana Time. No prefácio da biografia de Snu, traçada pela mão da sua mãe, Jytte Bonnier, seis anos após Camarate – e publicada em 2003 pela Quetzal -, Marcelo Rebelo de Sousa escrevia no prefácio uma curiosa declaração sobre este amor, classificando-o como uma «união de facto heterossexual. «Hoje, Snu, tal como Francisco Sá Carneiro, é, cada qual à sua maneira, património de todos nós», considerou então o agora Presidente da República.
Na tal biografia, conta-se que Sá Carneiro terá pedido a Natália Correia uma descrição de Snu, ao que a poetisa lhe respondeu: «Uma princesa nórdica num esquife de gelo à espera que venha um príncipe encantado dar-lhe o beijo de fogo. E esse príncipe é você. Porque ela é a mulher da sua vida». Nunca mais se largaram.
De feições nórdicas e cosmopolita, Victoria Guerra não tem a certeza se Snu tinha consciência da sua beleza, mas não acredita que a editora a tenha usado alguma vez como arma. «Para Snu havia outras coisas mais importantes, como afirmava a própria, ainda muito nova, numa composição para a escola sobre o que iria ser: «Vou ser jornalista, provavelmente, (…) quero ser alguém que utilize um pouco mais o cérebro. Vou escrever sobre política, espero. (…) Se vais ser jornalista, tens de saber um pouco de tudo e de tudo um pouco, como diz o meu pai».
Nisto de dar vida a outro, é normal que os atores encontrem similitudes – ou inultrapassáveis fossos – entre a sua própria personalidade e a da personagem. Neste caso, Victoria Guerra diz partilhar uma crença com a nórdica: a de que «Portugal é um país incrível onde existe ainda tanto por fazer e sentir que a maneira certa de o fazer é e sempre será através do pensamento coletivo». Esse pensamento virado para a ação guiou-lhe as escolhas, mas a atriz reconheceu-lhe um outro lado. «Acho que Snu era uma mulher pragmática mas também muito sonhadora. Tinha o melhor dos dois mundos».
E, nestes dois mundos, foi Snu uma feminista? «Penso que sim. Representou-o a vida toda», diz a atriz. Mas, acima de tudo, foi uma mulher que devotou a vida a lutar por várias liberdades: «liberdade social, de imprensa, de pensamento».