Num passo maluco voaram na sala

Na praça de touros de Arenas, em Barcelona, Francisco Peiró, o bovino poeta, acabou com a invencibilidade de Beni Levi

Maó-Mahón é uma cidadezinha na ilha de Menorca: ponto mais oriental de toda a Espanha. Dizem que foi lá que se inventou a maionese, mas também não será motivo para fazer da terriola património universal da UNESCO. Para o que aqui me traz, registo uma forte influência britânica vinda lá dos confins de 1708 por motivo da Guerra da Sucessão entre Habsburgos e Bourbons. Vai daí, tornou-se o berço do boxe espanhol. Como de Maó-Mahón a Barcelona é um passo, ou melhor, uma braçada, não é de espantar que o primeiro clube de boxe a surgir na região tenha sido o Barcelona Boxing Club, assim, à inglesa. 

Por cá, o início dos anos 40 dava-se valor aos grandes palcos catalães do boxe: Gran Price, Olympia, e até a praça de touros Arenas. Foi precisamente nas Arenas que o bovino Francisco Peiró desancou sem dó nem piedade o nosso infeliz Beni Levi que uns meses antes esmurrara francamente o italiano Toni Cesari, no Coliseu de Lisboa. Isto em 1943.

Chegaram por essa altura à metrópole uma remessa de boxeurs que prometiam tardes e noites escaldantes nos ringues da capital. Os empresários esfregavam as mãos. Carlos Gomes, Luís Eugénio (o Xangai), Carlos Wilson, Fernando Matos, Valente Rocha, Alfredo Oliveira, Jorge Tofoy e, evidentemente, Benjamim Levy, enfileiravam-se para sessões de porrada de criar bicho. Era o que a malta queria.

Carlos Gomes não era moçambicano, nascera no Lumiar, passara a adolescência em Lourenço Marques, fora treinado por um sul-africano, despachara o serviço militar em Macau, e despachara também o terrível Calembourne numa sessão contínua de sábado no Clube Ferroviário. Era um brincalhão com atitudes de fera. Mal regressou a Lisboa foi atirado para o meio das cordas à mistura com Quintino e foi de tal ordem que resolveu em três rounds o que deveria ter sido resolvido em seis. Não tardou que lhe passassem a licença de profissional. 

Mas voltemos à vaca fria, isto é, ao combate entre o boi catalão Peiró e o até aí invencível Benjamim. «Quer-nos parecer que a primeira derrota de Levi vai ser uma coisa séria», previa o misterioso Argonauta, na revista Stadium. «É que as multidões, como as mulheres, só aplaudem e admiram aqueles que triunfam, e Levi não pode vencer sempre nem sempre que o público queira».

Na mouche! A primeira derrota de Beni foi uma coisa séria.

Francisco Peiró tinha fama de boémio e cantava tangos afinados. «He sido siempre un soñador», diria já depois de retirado. «Me agradaban las cosas más dispares. Cantar, recitar, escribir versos, boxear, los bailes exóticos… Quería abarcar demasiadas aficiones y no habia tiempo para dedicar-se a una concreta».

Foi esse diletantismo que feriu profundamente Beni Levi, muito mais do que as quatro punhadas recebidas em cheio no rosto durante o histórico primeiro round da sua estreia nos palcos internacionais. A praça de touros silvou como se assistisse a uma faena. Levi aguentava como podia, e podia muito, era admirado pela sua resistência, mas todos em redor do ringue ansiavam pela sua queda. Sérgio Godinho podia cantar: «Num passo maluco/voamos na sala/qual uma estrela/riscando o céu/e a malta gritou – Aí Benjamim!». 

Sempre que se referiu ao combate de Las Arenas, Peiró afirmou que tinha atirado o português ao tapete por diversas vezes e que essa tinha sido a explicação para a decadência súbita de Levi. «Trouxeram-me um adversário que prometia vir a ser um grande campeão. Depois de o ter vencido, esfumou-se como uma vela ao vento. E logo contra mim, que nunca fui campeão de nada».

Beni Levi estava à beira do KO e houve KO extraordinários logo ao primeiro assalto, como os de Ted Kid Lewis frente a Carpentier, o Homem Orquídea, de Ledoux face a Criqui ou de Ferrer perante Cerdan. Os golpes apanhados a frio, quando os músculos ainda estão a iniciar a ação, têm sempre efeitos duplos, dizem os entendidos.

Nos assaltos seguintes, Benjamim acautelou-se. À volta dos dois pugilistas que só se viam um ao outro, mais de trinta mil pessoas uivavam possessas de sangue. Por uma, duas vezes, Peiró cambaleou. Foi ao chão durante breves segundos. Mas não iria desperdiçar a oportunidade de vencer o invencível. «Não é aquele boémio cantador de tangos que tantos apregoam mas sim um autêntico batalhador, o homem que pela primeira vez bateu o nosso campeão sem ter sido no cabaré ou a cantar», sublinhava o Argonauta.

Exausto, dorido, Beni Levi estava mais ferido no orgulho do que nos sobrolhos abertos à custa de murros crus. Meio grogue, Peiró erguia os braços, talvez preparado para recitar um poema. Da sua autoria, pois era um poeta.