Tínhamos decidido nada escrever sobre o ‘caso de Tancos’ enquanto permanecesse a turbulência comunicacional que o envolve; mas, como esta não tem parado, achamos oportuno apresentar algumas evidências, antes que tenhamos, neste século, um novo ‘Milagre de Tancos’.
Há quem entenda que este tema é para ser consultado dentro de décadas no Arquivo Histórico Militar, numa versão nova – e mais rebuscada – do novel ministro Cravinho para, à semelhança do que frequentemente faz o primeiro-ministro da ‘geringonça’, se atrever a ‘decretar’ o encerramento de dossiês potencialmente explosivos.
Mais um com pretensões a… ‘encobridor’.
O ‘caso de Tancos’ não foi apenas ‘mais um’ entre outros roubos que vêm acontecendo nas Forças Armadas e nas forças de segurança. Pelas circunstâncias (volume e local), este assumiu maior relevo inicial – e ‘cresceu’ pelos sucessivos disparates por muitos cometidos.
Desde logo, revelou um desprezo total pelas boas práticas de controlo e conferência de material, que, segundo julgo saber, têm a sua origem nas ‘ordenanças’ instituídas pelo conde de Lippe no século XVIII.
Onde estão os registos rigorosos das existências? O que é feito das inspeções ordinárias, das extraordinárias e das inopinadas? Se aconteceram, por que razão não se revelaram eficazes?
Como não podem ser realizadas por máquinas, e precisam de intervenção humana (militar), parecem ter sido simplesmente abandonadas.
Se elencarmos os ‘infelizes’ acontecimentos deste tipo ocorridos nos tempos recentes, verificamos que tiveram sobretudo lugar em unidades de forças especiais, em locais importantes e… até, no Comando Geral da PSP, agora Direção Nacional da Polícia.
É evidente que existe um ‘contágio tóxico’, por abandono de boas práticas – e, por certo, deficiente instrução, formação, supervisão e controlo. Para lá de uma total ausência de ação de comando em diversos níveis e ocasiões.
No ‘caso de Tancos’, interessava apurar, antes do mais, quem roubou. O que foi roubado? Quem deixou roubar? Por que deixou roubar?
Mas não foi isso que aconteceu!
A sofreguidão de ‘aparecer no ecrã’ levou vários atores a aparecerem demais, em sítios onde não deveriam – e a dizer o que também não deviam.
No fundo, assistimos a uma versão mais recente – mas igualmente infeliz e despudorada – do que aconteceu aquando do fluxo de ‘gente sôfrega’ aos postos de comando onde se fazia frente aos terríveis incêndios de 2017.
As televisões mostraram-nos recentemente como o espaço dos paióis de Tancos se tornou exíguo para tantos VIPs, ao ponto de o ex-ministro Azeredo Lopes se ter visto na contingência de falar com o comandante supremo das Forças Armadas com a ‘mão à frente da boca’ – qual futebolista que tenta, a todo o custo, evitar a expulsão.
Aconteceu, pois, o previsível: o desastre.
Como admitir que um Exército que compra viaturas de representação de luxo (Mercedes e Skodas Superb) não tenha verbas para manutenção da vedação e para a segurança dos paióis?
Como admitir que um Exército que, a propósito do seu aniversário, organiza celebrações com reserva completa de hotéis para instalar os seus VIPs, não encontre verbas para o essencial da sua missão?
Como admitir que o mesmo Exército tenha constituído a maioria das forças que desfilaram em Lisboa na recente – e muito dispendiosa – celebração do centenário do Armistício, deixando quartéis e instalações abandonados a guardas mínimas?
Esta parada militar foi publicitada repetidamente como ‘a maior do século’ (!) em efetivos mobilizados, mas para o cumprimento das missões atribuídas aos militares no interior do território nacional parece nunca haver verbas e pessoal suficiente.
E se reduzissem ao mínimo as celebrações do passado – certamente interessantes e justas, mas dispendiosas – e concentrassem os recursos nas exigências do presente e no futuro?
Dito de outra forma: abandonem o supérfluo e centrem-se no essencial.
O país agradecerá com toda a certeza.
Voltemos ao ‘caso de Tancos’.
As pretensas explicações do sucedido foram infantis, desajustadas e ofensivas para a compreensão de quem tomou alguma vez contacto com a instituição militar.
Por favor, não brinquem com milhões de portugueses que – noutro tempo – cumpriram serviço militar e sabem perfeitamente como havia rigor extremo no controlo e manuseamento de armas e material crítico.
Reiteramos o nosso pedido: por favor não brinquem com os portugueses! Não somos todos parvos.
Uma das evidências mais tristes tem sido o comportamento do comandante supremo das Forças Armadas, que parece ainda não ter percebido quais são as suas ‘reais’ competências na matéria.
O comandante supremo das Forças Armadas, face à indefinição das suas competências – logo, responsabilidades –, expressas em poucas linhas constitucionais, tem sido mais notário que juiz; isto é, o seu ‘poder de influência’ (o único), apesar das aparências, tem sido mais de aceitação do que de intervenção.
Ser comandante (e não é necessário ser ‘supremo’) tem uma envolvência muito própria que não se aplica, de todo, no cargo em apreço.
Sejamos claros.
O Governo tem seguido uma estratégia que já é tradição, em governos socialistas, na abordagem às questões de Defesa Nacional: desvaloriza, ironiza, descompromete-se e… passa a bola a quem a queira agarrar.
Será que os ‘esqueletos’ que tem no armário do 25 de novembro a tal obrigam?
As oposições, tirando raríssimas exceções, adotam comportamentos ‘politicamente corretos’, como acontece com o presidente da Comissão (Parlamentar) de Defesa Nacional, que diz tudo… e o seu contrário.
Resumindo: Marcelo Rebelo de Sousa tem sido igual a si próprio. Faz o que sempre fez na vida, só que agora esquece que é o supremo magistrado da Nação, o supremo comandante das Forças Armadas, mesmo que alguém o queira transformar também no ‘supremo ansioso’. Mas, na essência, é o chefe do Estado… a que chegámos!
António Costa também tem sido igual ao que sempre foi. Não mudou…
Do mais que certo ‘choque de titãs’ que acontecerá entre ambos, só um vai sobreviver. E eu não tenho dúvidas de quem tem a ‘pele mais grossa’ e a perfídia mais desenvolvida, para além da treinada e comprovada resiliência.
Rui Rio também tem sido o que eu dele esperava: um vazio. Arrogante, autoritário e auto-suficiente, com dificuldades evidentes de viver em democracia, com verdade e transparência.
O ‘resto’, infelizmente, é ‘paisagem’.
Há honrosas exceções (poucas) na comunicação social livre e independente (salvo seja); se não fosse esta, ao planeado ‘achamento’ do material ter-se-ia seguido o previsto ‘enterro/encerramento’ do caso.
Estamos pois, verdadeiramente, num pântano – e não numa nebulosa. Pois o que acontece está na terra (e permanece) e não no ar (onde se evaporaria).
Como sair?
Pessoalmente, só vejo uma solução:
– Que cada um dos atores reveja os seus procedimentos e se remeta, de vez, ao que a doutrina, a lei e o ‘bom senso’ recomendam;
– Que cada um dos atores faça, com discrição, o que lhe compete fazer, e exija o mesmo aos outros;
– Que a Justiça cumpra, em tempo, os fins para os quais existe.
Fiquemos, por hoje, por estas primeiras evidências.
Em breve analisaremos outras:
– Serviços de Informações da República (os relatórios que fizeram – para quem? – ou não fizeram), Sistema de Segurança Interna (o que fez ou não fez, e devia ter feito), Guarda Nacional Republicana (é para isto que serve?), Polícia Judiciária Militar (para quê?).
E isto para além do provocado e fantasioso ‘achamento’, ele próprio e as suas circunstâncias, bem como as consequências que dali advieram.
Como é óbvio, interessará analisar quem sabe (ou soube) o quê. Quando? Por quem? Em que circunstâncias?
Quem agiu, deliberada e conscientemente, e quem foi ‘vítima do sistema’?
P.S. 1 – Sobre outro assunto muito preocupante, em Nome da Verdade devemos seguir atentamente o ‘julgamento dos Comandos’, porque o que lemos da prestação de dois advogados sobre os conceitos de ‘punição’, ‘castigo’ e ‘incentivo’ não nos faz prever grandes e honrosas saídas…
P.S. 2 – No próximo número começaremos a tratar um importante e atual tema: a Condição Militar.
Major-General (Reformado)