Breve teoria dos semáforos

Aquela teimosia do semáforo que ficava vermelho a maior parte do tempo, caindo muito rara e rapidamente para verde, começou a encanitar os habitantes da rua Rodriguez Arias, em Bilbau, não longe da Vizcaya Plaza. Quando perceberam que a culpa era de um sem-abrigo, que insistia em carregar no botão do vermelho de forma a…

Aquela teimosia do semáforo que ficava vermelho a maior parte do tempo, caindo muito rara e rapidamente para verde, começou a encanitar os habitantes da rua Rodriguez Arias, em Bilbau, não longe da Vizcaya Plaza. Quando perceberam que a culpa era de um sem-abrigo, que insistia em carregar no botão do vermelho de forma a ter mais automóveis parados às janelas dos quais mendigar uns tostões, resolveram atribuir-lhe uma espécie de avença, desde que ele pusesse fim à pilhéria. Ele recebia a tal verba semanal mas não deixava o semáforo. Enfim, multiplicava os proventos. Depois, um tipo mais bruto, com sentido de humor a roçar o alemão, partiu-lhe os indicadores. Reação exagerada que ainda assim terá posto o malandrim na ordem. Desapareceu da zona. Não tardaria a morrer vítima de tifo. Jovem como o Menino de Sua Mãe de Fernando Pessoa. Mas sem cigarreira breve. Tinha uma alcunha: Pijiji.

Bilbau chora quando a palavra se espalha de boca em boca: tifo. Os italianos utilizam-na com determinada ligeireza: «Ma lei per quale squaddra tifa?». Daí o «tifoso»; um ou dois degraus abaixo do fanático. O ano de 1922 foi absolutamente assassino. O tifo veio lá da União Soviética num epidemia que acabaria por assolar o País Basco. Mortos, mortos e mortos. Miguel de Unamuno, uma das mais extraordinárias figuras da cultura castelhana, escreveu: «¡Pobre corral de muertos entre tapias/hechas del mismo barro/sólo una cruz distingue tu destino/en la desierta soledad del campo!». E Unamuno vem absolutamente a propósito. Ele sobreviviu ao tifo, mas o seu sobrinho-neto Rafael Moreno Aranzadi, não escapou ao quarto cavaleiro do Apocalipse. E Unamuno tratava a morte por tu: «Este buitre voraz de ceño torvo/que me devora las entrañas fiero/y es mi único constante compañero/labra mis penas con su pico corvo».

Rafael Moreno tinha duas grandes paixões. As ostras e o futebol. Há quem sustente que o tifo que lhe roubou a vida terá sido transmitido por bactérias do tipo rickettsia, que se encontram precisamente nas ostras menos frescas, mas isso seria entrar por um daqueles túneis obscuros e maçadores dos quais fujo a sete pés. 

Quando o abutre voraz de Unamuno se ergueu no infinito levando nas garras o seu sobrinho para um desses quaisquer locais eternos, Bilbau voltou a chorar. Rafael tinha 29 anos. E uma alcunha como a do sem-abrigo que avermelhava semáforos na rua Rodriguez Arias: Pijiji. Ou Pichichi. Ou Pato Silbón, pato barulhento, ou pato que assobia, em termos mais populares.

Os Aranzadi eram uma família com peso na sociedade bilbaína. Não lhes apetecia ter um dos seus filhos por aí, meio à balda, a dar pontapés numa bola no mais pequeno pedaço de terreno que pudesse ser utilizado como campo de futebol. Ainda por cima com casamento marcado com outra das criaturas mais estimadas da cidade, a filha dos Merodi. Mas Pichichi, o magrinho Rafael Moreno, que era praticamente pele e osso, ouvia as palavras do pai por um ouvido e elas saíam pelo outro com a mesma velocidade com que ia marcando golos em bica. Entre 1911 e 1921, com a camisola do Athletic, somou a barbaridade de 200 golos em 170 jogos.

Se Miguel de Unamuno foi sempre um homem livre – «Não! Nunca trairei a causa da Liberdade! Não falta muito para que me levante e lute. Não, não sou fascista nem bolchevique – sou sozinho!» – o seu sobrinho, pai de Rafael, era um situacionista que chegou a alcaide de Bilbau no tempo do regime de Primo de Rivera. Já Pichichi mandava a política às urtigas e, apesar do seu peito de tísico e do seu pouco mais de metro e meia, dedicava-se a meter bolas dentro das balizas contrárias. Até certo ponto, era um vício muito seu. E passou a ser vício alheio a partir do momento em que o prémio para o melhor marcador do campeonato espanhol se tornou Troféu Pichichi.

O casamento amoleceu a rebeldia de Rafael. O peso de ser um menino-família foi-lhe retirando a raiva assassina que existe na alma de um avançado-centro. Depois de ter ido com a seleção espanhola aos Jogos Olímpicos de 1920, foi perdendo vertiginosamente o amor da populaça. Decididamente, nunca fora um deles. Nunca fora proletário, nunca tivera fome, tornara-se um dos primeiros jogadores profissionais do País Basco, e não renegava o sange de Grande de Espanha. Do desagrado ao insulto o caminho foi curto. Desistiu de jogar e tornou-se árbitro. Para quem não queria ser aporrinhado, não parece escolha lógica. Um ano depois estava morto.

A morte é a mais perfeita das redenções. Sobretudo quando se cruza connosco antes dos 30 anos. Aurelio Arteta pintou-o: ‘El cuadro de Pichichi e su novia’. Juan Antonio Zunzunegui fez dele personagem do seu romance Chiripi. O tio, Unamuno, sentiu-lhe a falta: «Alza los ojos y tu pecho anima;/conócete, mortal, mas no del todo». 

afonso.melo@newsplex.pt