Esta afirmação do Velho do Restelo, em Campolide, encerra uma verdade filosófica complexa e a sua interpretação pode conduzir por muitos ínvios caminhos.
Realmente, «O percurso faz-se entre o salto e a queda!», tal como se faz entre qualquer ponto de partida e outro de chegada, mas a imagem visual de um salto tem um impacto maior do que um caminho horizontal e plano.
E esta frase faz ecoar em mim uma outra que ouvi, há cerca de três anos, ao padre João Seabra, aquando do funeral da Carlota, uma jovem de 15 anos que se suicidou. Dizia ele, citando um escritor, que entre o salto e a queda há tempo para o arrependimento. E esta é uma verdade demasiado pungente para conseguirmos ficar descansados. Alguém que se suicida mas antes se arrepende, sem que possa voltar atrás, é uma imagem que perturba por já nada poder ser feito para alterar a situação de sofrimento em que se encontrava a pessoa e em que ficaram aqueles que dela gostavam ou a conheciam.
Em artigo recente, diz Henrique Raposo que, através das pessoas que tentaram suicidar-se saltando da Ponte Golden State, em São Francisco, mas que sobreviveram e contaram que assim que tinham começado a queda se tinham arrependido, «ficamos a saber que, no momento em que aciona o suicídio, no momento em que salta, o suicida aciona também o arrependimento. Ele percebe logo ali, naquela fração de segundo, que só há uma coisa sem solução, a morte, e que a dor que sentia até há uma fração de segundo não era o fim do mundo. Ainda em pleno ar, ele percebe que a dor, física e sobretudo psíquica, que o levou ao parapeito da ponte, não é definitiva (…). O salto é ao mesmo tempo o último momento do desespero e o primeiro momento da lucidez reencontrada».
E a frase que recordo, se, por um lado, vem confirmar a frase do Velho do Restelo, vem, também, contradizê-la, porque, efetivamente, considerando que o percurso se faz entre o salto e a queda e há arrependimento, este de nada serve nesse percurso.
Em minha opinião, a frase do Velho do Restelo poderá querer chamar a atenção para o facto de a vida ser, sempre, um salto para o abismo, uma viagem de cujo início não estamos conscientes e cujo termo desconhecemos, e que o que mais importa é o percurso, ou seja, aquilo que vivemos e aquilo que vamos fazendo da vida, em função das opções que tomamos e do rumo que, por vezes, somos obrigados a tomar.
Olhar a vida como um salto é olhá-la como um ato perigoso, que só pode acabar com trágicas consequências. E a vida, quando termina, deixa de existir para aquele que estava vivo, o que, à partida, não me parece trágico, porque todos sabemos que um dia iremos morrer, mesmo que não queiramos, não aceitemos ou façamos tudo para não pensar no desfecho, até porque, como diz Mia Couto, num poema, achamos que «morre-se tudo / quando não é o justo momento // e não é nunca / esse momento».
Numa reflexão profunda e filosófica, afirma Yourcenar que traço dominante da vida é «a sinistra facilidade de morrer», a morte suspensa sobre todos qual «espada de Dâmocles». Mas preferimos ignorar esta verdade, recusando-nos a aceitá-la como inevitável.
E, assim, entre o momento de saltarmos para a vida, inspirando fundo e apreciando o mundo, e o momento da nossa partida, da tal queda, há-que aproveitar o percurso, usufruindo de tudo o que de bom a vida nos reserva e que é exatamente o que nos faz gostar de estar vivos. Como diz Lobo Antunes: «A nossa vida é feita igualmente de tanta coisa boa. Até no horror há coisas boas às vezes: um sorriso, por exemplo. O que há melhor que um sorriso?». O que há melhor do que dançar ou, simplesmente, respirar?
Maria Eugénia Leitão