Pirataria informática, Hannibal Lecter e proteínas

Justificar ou desculpar crimes em função de interesses ditos superiores tem muito que se lhe diga.

Comecemos este texto com aquela expressão que os juristas usam amiúde, quando vão discordar de alguém, sobretudo se o fazem com dureza: salvo o devido respeito. Ora, salvo o devido respeito, tenho assistido com um misto de asco e de riso (mas amargo) a uma certa discussão que vai por esse mundo fora sobre a suposta bondade de certos atos criminosos de pirataria informática. Vários crimes graves, afinal, ao que parece, não só não o seriam, como fariam até o autor ou autores arriscarem a beatificação social, porque com eles o que fizeram mais não foi do que denunciar o mal e contribuir para a transparência. E pronto, já está, não é preciso aprofundar, nem discutir mais, nem pensar. Narrativa feita, narrativa difundida, narrativa arrematada. Para quando a santidade?

Ora, isto é – salvo o devido respeito, claro – superficial, distorcido e até um pouco estúpido, sendo também, e sobretudo, muito perigoso. Mas soa bem, e vende ainda melhor, combinação perfeita para fazer vingar narrativas. Aos autores dos crimes e aos seus familiares, não posso levar a mal a teoria, claro, por razões compreensíveis, e aos seus advogados também não, porque fazem o seu dever, embora possa ter as minhas opiniões (intelectuais, digamos) sobre a linha de defesa. Mas a todos os outros já levo um bocadinho a mal – apenas intelectualmente, claro, e salvo sempre o devido respeito – a superficialidade e et cetera da análise nestes termos. 

Isto de justificar ou desculpar crimes em função de interesses ditos superiores tem muito que se lhe diga, e vem nos livros, logo aliás nos mais simples sobre a chamada teoria do crime (aqueles que qualquer um deveria ler ou reler, antes de se abalançar a doutrinar a população). Não é assim de qualquer maneira, para qualquer coisa, e com duas pinceladas e já está. Trata-se, em primeiro lugar, de situações excecionais, e extremas. Em segundo, os interesses têm que ser mesmo superiores, em si mesmos, e aos que se colocam em causa com os crimes praticados. Depois, terceiro, tem que haver mesmo necessidade, estrita adequação e ponderada proporcionalidade. Quarto, cumpre encontrar boa-fé na coisa, já agora. E, quinto, sexto, e por aí fora, mais umas coisinhas de nada, mas importantes para se poder dizer que algo que é crime deixa de o ser ou que, sendo-o, não merece censura. Mas pronto, já são complicações, admito, rodriguinhos, miudezas, manias de jurista meticuloso. É muito mais simples e bonita a teoria acrítica da transparência e bem mais sedutor o mito do bom rapaz. Não é? Quem não gosta, com uma pitada de voyeurismo, e laivos de folhetim?

Mesmo que para aceitar a narrativa tenha que esquecer que, se calhar, os interesses não são assim tão superiores, que a conduta não é necessária, e que vai muito para lá da adequação. E esquecendo, além do mais, que se vende informação, ou se pede dinheiro por ela. Boa-fé, claro, princípios abnegados, mas já agora um dinheirito não caía mal. E espalhar revelações que não se relacionam com nenhuma denúncia relevante também fica bem, e ninguém se importa, são só mais uns pozinhos, e tudo se beatifica com a estúpida (mas vendável a metro e barata) teoria do bom selvagem que salva a humanidade da opacidade e do obscurantismo. E por aí adiante. Pouco importa, são detalhes, coisas de jurista. Não querem pensar nisso, pois não?
E no perigo da teoria, querem pensar? É que ela mais não é do que uma versão ligeira da estafada, mas rendível, ideia de que fins aparentemente bons justificam os meios, quaisquer meios mesmo. Há transparência a conseguir, e as autoridades e os meios legais não vão lá ou não vão lá como se quereria? Então pronto, pirataria informática, e já está. E quem diz pirataria informática, diz escutas telefónicas, buscas domiciliárias, revistas, exames, e por aí adiante. Bem visto, bela ideia, vamos entregar isso a bons rapazes que por aí andem disponíveis para se entreter com estas coisas. Não? Mas porquê? O princípio não é o mesmo? Os fins não são bons? Não vale tudo? 

E umas milícias privadas para fazer justiça nas ruas também ia bem, não acham? A justiça é o que é, já se sabe, lenta e injusta, tanta malandragem que por aí anda à solta, não seria melhor limpar as ruas? Parece que sim, vamos nisso. Há de haver algum cultor da transparência e dos bons modos sociais disponível, mesmo que tenha que ser remunerado – de boa vontade ou mediante extorsão, não importa, o que interessa são as altas finalidades e os benignos propósitos. E uma torturazinha aqui e ali, para arrancar confissões aos criminosos, esses impenitentes cheios de garantias nos processos, que duram e duram e às vezes acabam em nada? Também não seria mal visto, e convido os cultores destas teorias a elaborarem sobre o tema. E, finalmente, se gostarem mesmo de coisas radicais, poderiam emprestar uns pozinhos desta doutrina a Hannibal Lecter, o qual, afinal, era um bom e bem-intencionado homem, que verdadeiramente só queria erradicar os maus da Terra. E, já agora, supremo gesto louvável, comê-los, para não desperdiçar proteínas.