CITROËN. Um trema mudou a vida do neto do Homem dos Limões

Há cem anos, no final da I Grande Guerra, um capitão do 2.º Regimento de Artilharia de Grenoble percebeu que a sua fábrica de material bélico deixara de ser sustentável. Mudou de ramo. Dedicou-se à produção de automóveis. O seu primeiro modelo, a Type A, vendeu mais de 24 mil exemplares em três anos. Um…

5 de Fevereiro de 1878. Paris. Lévie, um holandês que lapidava diamantes, e a sua esposa Macha sentiam-se felizes. Tinham acabado de ser pais. Andre viera ao mundo na casa que possuíam na Rue Laffitte, n.º 44. 

Seria o último de uma série de cinco irmãos.

Citroën não é um apelido vulgar e tem uma história curiosa. Em 1810, quando Napoleão invadiu os Países Baixos, estabeleceu a obrigatoriedade de todos os judeus alterarem os nomes de família. Reloaf, um vendedor de fruta, não esteve pelos ajustes. Atribuiu a si próprio a designação que lhe era dada, por pilhéria, pelos seus clientes: Limoenman, o Homem dos Limões. Ora, já o seu filho Barend não era muito dado nem a frutos nem a legumes. Mais finório, dedicou-se ao negócio de joias. Também não lhe apetecia carregar com aquela coisa dos limões às costas e refinou-se: ficou Citroen, que significa limão em flamengo mas sempre tem outro estilo. Por seu lado, o filho de Barend, decidiu que era em Paris que estava o futuro. Saltou a fronteira. Filho esse que era Lévie.

As coisas iam correndo alegremente ‘chez les Citroën’. O dinheiro entrava em quantidades consideráveis, de tal ordem que não tardaram a mudar-se para uma mansão na vizinha Rue de Châteaudun ao mesmo tempo que Lévie se lançava num investimento volumoso numa exploração de ouro na África do Sul. O passo acabou por ser maior do que as pernas. Deu para o torto. Não caíram na ruína mas foram obrigados a ter cuidado com os fundos dos bolsos. Corria o ano de 1884.

Lévie era um homem orgulhoso e não lidava nada bem com o fracasso. Tornou-se taciturno, acumulou paranoias. No dia 16 de setembro, pelas três e meia da manhã, saltou pela janela, partiu a espinha e as ancas. Absolutamente fatal.

Com seis anos, Andre não deixaria de ficar profundamente marcado pela tragédia.

Há que dizer, pelo caminho, que ainda não era Citroën: era Citroen. O requinte do trema foi-lhe acrescentado a partir do momento em que se inscreveu no Liceu Condorcet, um dos mais antigos e prestigiados de França. A mãe, que mantivera o negócio, decidira afrancesar os seus filhos até à medula.

Leitor compulsivo das obras de Júlio Verne, Andre demonstrou ser um aluno brilhante, sobretudo na área das ciências. Viria a tirar o diploma na Escola Politécnica.

Certo dia, em Varsóvia

Macha Kleiman tinha saudades da família. Certa Páscoa resolveu levar os filhos a Varsóvia. Uma luz acendeu-se na cabeça de Andre quando visitou a fábrica de um primo cuja inovação era a da fabricação de rodas dentadas com estrias em V. A imagem terá sido tão forte que acabaria por ser adotada como emblema da marca que levou o seu nome.

E não foi preciso esperar muito. Mal se viu engenheiro, investiu o pouco dinheiro que herdara do pai e, juntamente com os irmãos Jacques e Paul Histin, fundou a Citroën, Hinstin et Cie. Para produzir as tais rodas dentadas que mais tarde seriam adotadas aos motores de automóveis de forma revolucionária.

A I Grande Guerra cortou-lhe anos de vida, mas distinguiu-se como oficial valoroso, primeiro tenente, em seguida promovido a capitão. A sua diletância boémia e o fascínio pelas apostas, nos casinos ou em Longchamp, tinham feito dele um mundano. Ainda assim casou-se, para surpresa dos seus amigos, com Georgina Bingen, e deitou mãos ao trabalho mal entregou o espólio no 2.º Regimento de Artilharia de Grenoble.

Entretanto, as suas usinas no Quai de Javel, que tinham fabricado material de guerra em grande escala, passaram a fazer parte da Société Anonyme des Engrenages Citroën e mudaram de ramo: produzir automóveis. A Citroën Type A ganhou uma popularidade formidável. Era vendida ao incrível preço de 7.950 francos o que a tornava acessível às classes sociais com menor poder de compra. Rapidamente, seguindo os exemplos de Nova Iorque, onde Andre Citröen foi em visita tentar entender a política comercial do «fordismo», Paris tornou-se na capital europeia do automóvel. Em apenas três anos, venderam-se 24.093 exemplares da Type A. Uma década mais tarde, a Traction Avant, conhecida entre nós por Arrastadeira, surgiria como um exemplo da modernidade. A imagem foi sempre algo fundamental para Andre. Talvez por isso tenha alugado toda a altura de uma das faces da Torre Eiffel: com 250.000 lâmpadas, o nome Citroën subiu até ao céu da Cidade Luz. Afinal, o céu era o seu limite.