Chovia como se o céu doesse…

White não era apenas branco de apelido. A sua tez era tão clara que fazia dele praticamente transparente. Alvo, louro, exangue, como o Menino de Sua Mãe, tinha um jeito especial para não ser visto. Não que pura e simplesmente passasse despercebido. Era a forma como se movimentava, como corria sem que os pés tocassem…

John White e Cliff Jones eram bons amigos. Um escocês e um galês que jogavam no meio-campo do Tottenham. Não perdiam a oportunidade para uma boa pilhéria. Traziam um sorriso contínuo riscado na cara. Há quem garanta que essa foi a melhor equipa dos spurs de todos os tempos. Primeiro clube inglês a ganhar uma taça europeia. Tinha o estupendo Jimmy Greaves. E Danny Blanchflower, o Expresso de Belfast. E o inultrapassável Dave Mackay. E aquele toque nigromante do Fantasma.

 No dia 21 de março de 1962 estiveram em Lisboa, para defrontarem o Benfica. Mas isto é só um pormenor. Que até nem vem propriamente ao caso. Outro dia 21, o de Julho de 1964, seria mais importante. Ou mais trágico, se quiserem.

No final do treino, John atrasou-se no chuveiro e Cliff aproveitou para se ir embora levando as calças do parceiro. O tipo de facécia à qual não conseguia resistir. White ver-se-ia positivamente com as calças na mão, não se desse o caso de elas terem desaparecido do cacifo. Encolheu os ombros. Era um rapaz desembaraçado. Meteu-se no carro de cuecas e guiou até casa para buscar outro par. Em seguida dirigiu-se a Crews Hill, uma colina nos arredores londrinos de Enfield, uns vinte quilómetros para norte de Charing Cross. O lugar em que costumava bater umas bolas de golfe na companhia de Jones. Aproveitaria para reaver as calças e talvez conseguisse vencer o comparsa por uma diferença suficiente para o deixar espinafrado. Enganou-se. Nunca mais o veria.

A tarde começou a enegrecer a pouco e pouco. Nuvens escuras acumularam-se no horizonte e um vento incomodativo desarrumou as folhas das árvores e inquietou os pássaros. John bem esperou por Cliff, mas este não apareceu. Decidiu jogar sozinho. Já ia no nono buraco quando a chuva tombou em bagas grossas e se ouviu o primeiro trovão.

Um raio atravessa o corpo humano em três milésimos de segundo, diz a ciência. A corrente elétrica que desabou sobre White queimou-lhe a pele e fez-lhe explodir os vasos sanguíneos. Rebentou-lhe os tímpanos, parou-lhe a respiração e provocou-lhe um ataque cardíaco no meio de um estertor escabujante. Deixou  no cadáver do Fantasma aquilo que os médicos chamam a Figura de Lichtenberg, uma cicatriz que desenha o mapa da circulação interna do relâmpago. White podia ser um sujeito apessoado, mas não foi um cadáver bonito. No plaino abandonado, sem uma morna brisa que o aquecesse, de braços estendidos, fitou com olhar langue e cego os céus perdidos. Chovia como o céu doesse…

The Ghost: In Search of My Father, the Football Legend, é um livro tocante. Foi escrito por Rob White, filho do segundo casamento de John, com Sandra, uma rapariguinha de 22 anos que lhe dera igualmente uma filha, Mandy. Rob nunca conheceu verdadeiramente o pai, mas escavou fundo nas memórias de todos quantos os conheceram. Afinal tinha apenas seis meses quando aquela luz decidiu despenhar-se sobre a árvore debaixo da qual White se protegera de uma tempestade de julho, quase tropical. Talvez tivesse mais confiança na natureza do que em Deus. Havia uma capela ali a dois passos. Nunca ninguém saberá o que motivou a decisão. As cicatrizes calam.

«Vivo há muito numa caixa fechada com muito para resolver», escreveu Rob. «Nem ao certo sei o que aconteceu com as cinzas do meu pai. Disseram-me que iriam espalhá-las sobre a relva de White Heart Lane. Nunca o confirmei». Entretanto o estádio do Tottenham foi demolido. O_Fantasma ficou sem casa. Vaguerá sem destino, se esse é o destino dos fantasmas.

Houve um dia que Rob sentiu necessidade de ir a Musselburgh, na costa de Firth of Forth, não longe de Edimburgo, local onde John nasceu em 1937. Procurou uma pousada para passar a noite e instalou-se antes de deambular pelos arredores. Contou que, apesar de ir em busca das raízes paternas, não revelou inicialmente quem era. Uma espécie de demanda, talvez. Necessidade de reservar a intimidade da sua peregrinação. A senhora que o recebeu arranjou-lhe um quarto agradável e pediu-lhe um documento de identificação. Em seguida perguntou-lhe se queria deixar na receção o número de alguém próximo para o caso de suceder algum imprevisto. Rob estranhou: «Mas que diabo me pode acontecer enquanto passeio no campo?» E ela, com toda a naturalidade: «Ora, pode muito bem cair-lhe um raio em cima».

afonso.melo@newsplex.pt