Em William Gilbert Grace, a tristeza tinha muito espaço por onde se espalhar. Afinal era um latagão que ia para além dos 1,88 metros com um corpanzil de fazer inveja a hipopótamos. Um jornalista inglês descreveu-o desta forma um tudo nada bizarra: «Ho looks so unlikely». E, convenhamos, improvável era uma palavra que encaixava em William como uma luva.
Improvável é também conhecer alguém que saiba na ponta da língua as regras do improvável jogo chamado críquete. Uma vez, na Índia, em Jaiselmer, salvo erro, pedi a um vizinho de mesa que me fosse explicando o que se ia passando num jogo entre a Índia e o Paquistão. Ele tentou e eu também. Mas enquanto se excitava ao ponto de não dizer coisa com coisa, eu aborrecia-me ao ponto de não ouvir coisa com coisa. Bebemos um chá carregado de leite e açúcar e, duas horas mais tarde, quando saí, fiquei com a sensação de que o jogo nem sequer ia a meio.
W.G. adorava críquete. Montanhoso, barrigudo, com o cinto apertado bem acima do umbigo, chamavam-lhe ‘Great Old Man’. Ah! A barba caia-lhe crespa até meio do peito ancho. Quando morreu, com 67 anos, em 23 de Outubro de 1915, ainda jogava como um rapazito de 20. Era absurdamente teimoso. Os ingleses têm a tendência de considerar isso como uma virtude. E um grande batoteiro, o que já não tem nada de virtuoso mas ajuda a ganhar uns cobres.
Aos 15 anos, já o mostrengo pesava 95 quilos. Viria a atingir os 140. Nada que o impedisse de ser considerado o maior sportsman de Inglaterra. Não tinha pejo em declarar: «Não vale a pena perguntarem-me o que sinto, porque não sinto nada. A minha cabeça fica completamente ocupada com os movimentos que observo para poder pensar em mais alguma coisa para além disso». Só que aqueles que conviviam com ele mais de perto não acreditavam minimamente em tal desprendimento. Afinal, Grace já tinha enterrado os dois irmãos, os pais, a filha e o filho mais velho. Com pouco mais de 40 anos ficara só. Uma silenciosa mágoa corroía-o por dentro, mas ninguém estava autorizado a vê-lo longe da máscara de gordalhão irritante ou falsamente feliz.
Fernando Pessoa sabia uma ou duas coisas sobre a tristeza. Certa vez, nunca carta a Mário de Sá Carneiro, fez notar: «A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça». Para W.G. nunca houve desembarque onde esquecesse a morte.
Vivia entusiasmado pela bola, fosse ela de que tamanho fosse. Aliás tornou-se, igualmente, um poderoso jogador de futebol, ávido por golos à moda de um Pantagruel. Charlie Alcock, que foi seu companheiro de equipa no Wanderers, contava que era vulgar em Grace empurrar os próprios companheiros de equipa para lhes roubar golos que estavam prestes a concretizar. Bem podia ter tirado o curso de medicina e jogar críquete pelos Gentlemen: não deixava por isso de se comportar como um autêntico javali.
A morte da filha Bessie, aos vinte anos, vítima da febre tifoide, e do filho W.G. Junior, cinco anos mais tarde, atacado por uma apendicite galopante, foram golpes que o gigante Grace nunca conseguiu aguentar. Quando teimava com os mais próximos que nunca fora treinado para pensar, desmentia o olhar dolorido e profundo que lhe marcava as feições. Nos intervalos do seu trabalho no St. Bartholomews Hospital ou na Westminster Hospital Medical School, experimentava tudo o que pusesse em marcha a sua rubicunda figura: foi corredor de 400 barreiras, lançador de dardo e de peso, dedicando-se igualmente ao curling, ao bowling e ao golfe.
Há quem ainda hoje considere W.G. Grace como o maior de todos os jogadores da história do críquete, tanto em tamanho como em qualidade. Os Monty Python atreveram-se a dar-lhe a cara de Deus no Cálice Sagrado, na cena em que os cavaleiros são enviados na sua sagrada missão. Inegável é o facto de, durante cerca de duas décadas, William ter sido o homem mais famoso de Inglaterra. Apostador inveterado, fez uma fortuna apreciável. Mas a sua margem de lá do rio nunca foi a de cá…
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