Três dias volvidos sobre a sua visceral demonstração de poder, já tudo foi dito e escrito acerca do inesquecível feito – mais um depois de tantos – de Cristiano Ronaldo na Champions League. Este podia ser um texto sobre os seus recordes. Não é. Podia ser um texto acerca dos registos inacreditáveis que está a somar nesta nova etapa. Também não é. Impossível olhar para o homem sem a sombra dos seus números, imponentes, demasiado esmagadores para que os possamos ignorar, e como tal teremos de viajar por entre eles ou deixar apenas que se apoderem de nós, de tão dominadores e hipnotizantes que são. Mas deixemos para já de lado essa imensa dimensão dos dígitos. Já lá vamos. Este texto é, acima de tudo, uma homenagem a uma criança. Um menino que vive dentro de uma lenda, uma lenda que vive dentro de um homem e um homem que vive dentro de um sonho. Um puto que é do mundo mas continua na Madeira e que a partir da Madeira vergou o mundo a seus pés…
Um olhar que não engana. Este miúdo já sabia tudo aquilo que nós ainda nem nos atrevíamos a sonhar
Quantas vezes ouvimos dizer que não há limites para os sonhos? Nada mais falso. Todos os dias milhões de sonhos são esmagados, triturados, transformados em pó, ou pior, em pesadelos. Ao ponto de haver já um medo tremendo de sonhar mais além, pela certeza de que esse além está fora do alcance. Crescemos e paramos de sonhar, somos os carrascos dos nossos próprios sonhos. Ganhamos consciência dos nossos limites e descemos à terra. E quanto mais crescemos mais descemos. Há, porém, uma ínfima minoria que nunca deixa de sonhar. Que não reconhece limites. Que vive num mundo que é só seu e no qual se recusa a crescer. Um mundo onde os sonhos voam cada vez mais alto sem que nada os possa impedir. Nesse mundo entram crianças e desse mundo saem super-heróis. Sim. Daqueles que só existem nos sonhos.
Ronaldo é Ronaldo porque o pequeno Cristiano dentro de si se recusa a desistir de sonhar. Ousa sonhar cada vez mais alto! Mais longe! Mais forte! Mais imortal! E nas asas do seu sonho transforma o homem na irrepetível lenda viva que se eterniza a cada dia que passa… Só assim se explica que aos 8 anos tenha rumado ao Andorinha para vencer. E venceu. Que aos 10 tenha rumado ao Nacional para vencer. E venceu. Que aos 12 tenha rumado ao Sporting para vencer. E venceu. Que aos 18 tenha rumado ao Manchester United para vencer. E venceu. Que aos 24 tenha rumado ao Real Madrid para vencer. E venceu. Que aos 33 tenha rumado à Juventus para vencer. E venceu. Parece fastidioso, não parece? Repetitivo, cansativo, até. Mas a sua história é assim mesmo. Chegar, ver, vencer, partir. Chegar novamente, ver novamente, vencer novamente, partir novamente. Um círculo vicioso que parece não ter fim. Lembram-se do que eu vos dizia? Há uma minoria que nunca deixa de sonhar e não reconhece limites…
O líder está de volta. Pela Selecção soma 85 golos e é o único jogador da história do futebol mundial a marcar em 9 fases finais consecutivas de grandes competições
Chegamos ao momento de viajar por entre os números. Tantos. Tão impactantes e numa cadência que atemoriza. Uma espécie de código binário onde está desmontada a fórmula secreta do sucesso. Se ao menos fosse assim tão simples… Mas não. Não é. Nada é simples quando se trata de ascender ao topo do mundo. Comecemos então pelo fim, que é como quem diz por Turim. Ao serviço da Juventus, CR7 está a atingir patamares nunca antes vistos. Níveis de excelência competitiva apenas ao alcance dos imortais, índices exibicionais que silenciam até os mais céticos, e tudo isto assente em dígitos que se amontoam como uma espécie de pedestal para a obra-prima que Cristiano Ronaldo vai esculpindo jogo após jogo. Ali, no país dos mestres da tática e do rigor defensivo, diziam os especialistas que o capocannoniere portoghese teria dificuldades para mostrar a sua veia goleadora. E tinham razão! Mas por pouco tempo… Foram três os jogos em branco no arranque da temporada. 90 minutos, mais 90 minutos, mais 90 minutos. Nem um golo. Esfregavam as mãos os seus críticos de faca afiada e aguardavam tranquilamente aqueles que sabem que Deus perdoa mas Ronaldo não. Ao quarto jogo, minuto 50, bola no fundo das redes. E novamente ao minuto 65. Um bis na receção ao Sassuolo, nome pitoresco e de sonoridade transalpina, clube da região de Emília-Romanha que, prestes a celebrar um século de vida, entrava para a história ostentando o digno título não-oficial de ‘clube contra o qual Cristiano Ronaldo começou a desenhar a lenda da sua passagem por Itália’. Uma espécie de prémio de consolação para os Neroverdi.
De então para cá, um verdadeiro recital. Golos atrás de golos. Arrancadas fulgurantes e remates certeiros. Pé esquerdo. Pé direito. Cabeça. Dentro e fora da área. Bola corrida ou parada. A marcar ou a assistir. A servir ou a ser servido. Dá para tudo. Tudo! Em 36 jogos de Cristiano Ronaldo na Juventus, os Bianconeri faturaram 64 vezes. O português marcou 24 golos, fez 13 assistências, viu 5 golos marcados em recarga a remates seus, participou de forma determinante em 8 jogadas de golo e sofreu uma falta que deu origem à cobrança de livre direto que terminou em golo. Estamos a falar de 51 golos em 64, todos com intervenção direta de CR7. 80% dos golos da Vecchia Signora, 8 em cada 10. Uma absoluta barbaridade, mesmo para alguém que já nos habituou a derrubar todas as barreiras do impossível.
A Série A italiana está ganha. São já 18 os pontos de avanço para o Nápoles, segundo classificado. O título foi ‘carimbado’ a 3 de março no San Paolo, casa dos Partenopei e morada eterna dos melhores anos com que Diego Armando Maradona brindou o mundo. El Pibe, esse mesmo que ainda esta semana voltou a falar de Cristiano. «Há jogadores que são tocados por uma varinha mágica. Ronaldo é um animal. É pura potência. E agora também é bruxo! Disse que ia fazer três golos. E fez». De monstro para monstro, reverência máxima, reconhecimento extremo e respeito absoluto. Nessa mesma semana em que a Juve arrumava a questão do Calcio, o Real Madrid era esmagado na Taça do Rei, afastado da luta em La Liga e humilhado na Champions. ‘Adeus e até para o ano, terão pensado os adeptos merengues ao abandonar o estádio por entre cânticos que chamavam por Cristiano Ronaldo e ecoavam pelos corredores de betão do velhinho Santiago Bernabéu. O pior de todos os cenários confirmava-se. CR7 longe mas a jogar e a marcar ao seu nível de sempre, com títulos conquistados e a encantar na sua nova casa. E o Real Madrid mergulhado num marasmo de frustração no primeiro ano pós-Ronaldo. Não podia haver sensação pior… Não podia?!? Podia!!! Apenas uma semana depois a nostalgia ganhava ainda mais força e com requintes de malvadez. Cristiano despachava o Atlético de Madrid com um hat-trick épico e deixava os adeptos do Real numa verdadeira montanha-russa de emoções. Entre a alegria de ver o eterno rival humilhado e a angústia de ver, uma vez mais, CR7 a brilhar intensamente na competição fetiche dos madridistas, a Champions League que haviam conquistado nas três temporadas anteriores…
Turim, 12 de março de 2019. Uma foto que não é apenas uma foto. É uma metáfora da vida do Ronaldo que voa, que paira muitos patamares acima dos comuns mortais
O filme da época já vai longo mas ainda tem capítulos por encerrar. Vários. E importantes. Para trás fica a Supertaça Italiana conquistada na Arábia Saudita frente ao AC Milan em janeiro. 1-0, golo de Cristiano Ronaldo e o seu primeiro título pela Juventus. Ficam também exibições memoráveis de CR7 em casa frente a Nápoles, AC Milan, Inter, Sampdoria e Parma. Mas também longe de Turim, como o seu emocionado regresso a Old Trafford, onde foi recebido como um filho que visita a casa onde cresceu. Ou a estreia a marcar no imponente San Siro, frente ao AC Milan. Ou ainda o bis frente ao Empoli em pleno Carlo Castellani, culminado com um míssil teleguiado e provavelmente o seu melhor golo até ao momento com a camisola da Juve. A rivalizar com esse golo, outra obra de arte frente ao Manchester United, em Turim, naquela que terá sido a primeira desilusão da época: derrota na fase de grupos num jogo que a Juventus dominou do princípio ao fim e liderou com esse golo fenomenal de Cristiano ao minuto 65. Era hora de baixar à terra e lembrar que não há equipas imbatíveis… Menos de três meses depois, novo golpe difícil de encaixar: 3-0 em Bergamo frente à Atalanta e o adeus à Taça de Itália. A equipa estava amorfa, a atravessar um momento de menor fulgor e a precisar de ser recolocada no rumo das exibições que já mostrara ser capaz de fazer. Precisava de um farol que a guiasse. Ronaldo assumiu o papel que todos lhe reconhecem e não fez por menos: 7 golos nos 7 jogos seguintes! Faixas da Série A encomendadas em Nápoles, Atlético Madrid despachado na Champions e pelo meio ainda tempo para ajudar a recuperar animicamente um dos mais talentosos jovens jogadores do mundo: Paolo Dybala. Aos seus festejos habituais, juntou a ‘máscara de gladiador’ com que o fantasista argentino celebra os seus golos, motivando desta forma um craque que a Juve não se pode dar ao luxo de desperdiçar. Cristiano a ser líder. Sempre. Como sempre. E para sempre.
Agora há que começar a disputar o apuramento para o Euro 2020, onde Portugal se apresentará pela primeira vez na sua história como campeão em título. Ronaldo junta-se aos seus já esta semana depois de um interregno estratégico de 8 meses. Regressa mas na verdade nunca saiu. O capitão e a turma das quinas são entidades indissociáveis há mais de 15 anos. E em junho, em Portugal, há uma Liga das Nações para conquistar, competição à qual Ronaldo ainda não tomou o gosto mas na qual estará desejoso de se estrear. Mas antes, já nas primeiras semanas de abril, seguem-se dois duelos contra o imprevisível Ajax nos quartos-de-final da Champions. Na Série A, embora já virtualmente conquistada, há objetivos em aberto que podem ajudar ainda mais a eternizar o ano de estreia de Ronaldo em Itália: conquistar o campeonato sem qualquer derrota e bater o recorde máximo de pontos numa liga europeia está ainda ao alcance desta Juventus que soma já 75 pontos em 27 jogos. Vencendo em todas as jornadas que faltam até ao final da época somaria 108 pontos e pulverizaria o recorde dos galeses do Barry Town, fixado nos 105 em 1997. Mesmo um empate nesses 11 jogos permite bater o recorde e uma só derrota permite igualá-lo. Abaixo disso, uma almofada de duas derrotas ou três empates permitem ainda igualar a melhor pontuação de sempre da Juventus e de qualquer equipa italiana: 102 pontos alcançados pelos Bianconeri em 2014. ‘É sonhar demasiado alto logo no ano de estreia’, pensará o caro leitor. Se for o seu caso, é favor reler todo este texto para perceber de uma vez por todas que há um menino chamado Cristiano que nunca deixa de sonhar. Que não reconhece limites. Que vive num mundo que é só seu e no qual se recusa a crescer. Um mundo onde os sonhos voam cada vez mais alto sem que nada os possa impedir. Nesse mundo entram crianças e desse mundo saem super-heróis. Sim. Daqueles que só existem nos sonhos. Quantas vezes é preciso repetir?