O homem que aponta o dedo a Francisco Pinto Balsemão por nada ter feito para que a investigação de Camarate chegasse a bom porto, e cujo testemunho foi publicado na biografia sobre o patrão da Impresa escrita por Joaquim Vieira, não retira nem uma vírgula ao que afirmou. Balsemão, que considera as declarações de Alexandre Patrício «delirantes», avançou com um processo de difamação, mas o caso não chegou sequer a julgamento por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Dois meses após o acórdão ter transitado em julgado, Alexandre Patrício Gouveia, em declarações ao SOL, reafirma tudo o que disse, adiantando que considera Francisco Pinto Balsemão «o principal responsável político por o desastre de Camarate nunca ter sido devidamente investigado», justificando a sua convicção com o facto de Balsemão ser à época o titular do cargo de «primeiro-ministro».
O homem que foi adjunto para os assuntos Económicos no Gabinete do primeiro-ministro quando Balsemão liderava o Executivo e que integrou a comissão parlamentar de inquérito ao caso falou com o SOL sobre o processo que lhe foi movido e sobre as suas declarações no livro, deixando claro que não se arrepende de nada do que disse.
«As afirmações que eu fiz não me parece que tivesse qualquer problema. Francisco Balsemão entendeu que eram ofensivas e só posso explicar isso por ter uma relação estranha com o acidente de Camarate. Nunca soube gerir essa situação como seria lógico esperar e o que seria lógico esperar é que ele, enquanto primeiro-ministro, tivesse assegurado que havia condições técnicas para se fazer uma investigação séria e rigorosa».
Pelo contrário, diz, Balsemão «foi dando cobertura às conclusões da PJ e do MP que claramente não estavam a ser feitas de forma correta. Teve sempre uma apreciação dúbia em relação a Camarate». Alexandre Patrício Gouveia diz mesmo que esta é uma questão que «até aos dias de hoje [o antigo primeiro-ministro] não conseguiu resolver» e que, por isso, quando falou no assunto, «ele teve esta reação».
«Não fez tudo o que estava ao seu alcance para que as circunstâncias em que ocorreu o desastre de Camarate fossem esclarecidas. Não fez o que devia ser feito», voltou a dizer sobre a investigação ao caso que matou o seu irmão, António Patrício Gouveia, chefe de gabinete de Sá Carneiro que viajava com ele e com Adelino Amaro da Costa.
Balsemão diz que declarações são ‘delirantes’
Contactado pelo SOL, Francisco Pinto Balsemão voltou a rejeitar qualquer responsabilidade e tudo o que tem sido dito por Alexandre Patrício Gouveia. O fundador do grupo Impresa adiantou ainda que as declarações do seu primo são irresponsáveis e produto de imaginação.
«Essas graves, irresponsáveis e delirantes declarações são mais uma vez produto da imaginação obsessiva e paranoica de Alexandre Patrício Gouveia», afirmou ao SOL Francisco Pinto Balsemão.
Já este ano, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que Alexandre Patrício, assim como, Joaquim Vieira não difamaram Francisco Pinto Balsemão na biografia não autorizada da autoria do antigo jornalista do Expresso. Em causa estava uma acusação particular do dono da Impresa contra o autor da biografia e contra o seu primo, Alexandre Patrício Gouveia, que é um dos entrevistados na obra e lhe atribui responsabilidades no insucesso da investigação ao caso de Camarate.
Depois de na fase de instrução ter sido decidido que não existia nenhum indício relevante para levar ambos a julgamento, Balsemão avançou com um recurso para a Relação de Lisboa, que arrasou a sua argumentação e deixou claro que não foi cometido qualquer crime de difamação.
Relação arrasa argumentos de Balsemão
De acordo com a argumentação de Francisco Pinto Balsemão, existem «indícios mais do que suficientes da prática do referido crime por parte de ambos os arguidos», devendo a decisão instrutória «ser substituída por outra que pronuncie os arguidos pelo crime em causa, nos mesmos termos deduzidos na acusação particular apresentada pelo recorrente».
Segundo elencado no recurso, «de acordo com as declarações do arguido Alexandre Patrício Gouveia transcritas na obra, a tragédia da queda de uma aeronave Cessna, em Camarate, em 1980, que vitimou sete pessoas, incluindo o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de então, foi uma operação orquestrada e executada pela CIA, da qual o recorrente teria conhecimento prévio […] nada tendo feito para impedir a sua ocorrência».
É por isso que Balsemão conclui: «O arguido Alexandre Patrício Gouveia imputa ao recorrente cumplicidade na prática de factos ilícitos penais que teriam resultado na queda da aeronave e na morte de sete pessoas, o que consubstancia uma acusação de manifesta gravidade e censurabilidade que não merece a tutela do Direito».
A posição assumida desde o início não é acompanhada pelo Ministério Público, que, quando chamado a pronunciar-se sobre este recurso para a Relação de Lisboa, foi claro: «Pensamos que, considerando a polémica gerada pelo ‘Caso Camarate’ o lugar político que o assistente ocupava e até o modo de execução dos factos (declarações inseridas numa biografia do assistente), a conduta do arguido (sem entrar em considerações éticas) não extravasou os limites da liberdade de crítica e da liberdade de expressão, e, por isso, está justificada».
Relação cita Tribunal Europeu e lembra condenações
As desembargadoras Maria do Carmo Ferreira e Cristina Branco também consideraram que não existe na biografia editada qualquer citação passível de condenação. «Há que encontrar um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome e reputação, já que o nosso ordenamento jurídico aceita como crime a difamação», começam por esclarecer, lembrando como o país tem sido condenado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
«No caso da criminalização da difamação, Portugal tem sido um dos países considerados como menos ‘equilibrado’ nos critérios usados, sobretudo quando estão em causa figuras públicas eleitas por processo democrático. E, tem sido este o entendimento do TEDH, de que a noção de que as atividades dos titulares públicos […] devem estar abertas ao escrutínio por parte do público», continuam as juízas, aceitando a posição do Ministério Público: «Não vemos aqui os requisitos objetivos do crime de difamação e, ainda que se entendesse de outro modo sempre se teria de ter por justificada a atividade escrita, pelo exercício do direito da livre e incondicional expressão. Dizendo de outro modo: não existem probabilidades de ao arguido Joaquim Vieira ser aplicada uma pena em sede de julgamento».
Mas, se pensam assim para o autor da obra, o entendimento não muda muito em relação a quem colaborou com o livro, como é o caso de Alexandre Patrício: «O que se depreende da entrevista exarada no livro escrito por Joaquim Vieira, dada pelo arguido Alexandre Patrício Gouveia, é que este sempre considerou que a morte do seu irmão ocorreu em contexto de atentado e que o assistente, que à data ocupava o cargo de primeiro-ministro, omitiu procedimentos que deveriam nortear as investigações no sentido da tese de atentado, omitindo mesmo conhecimentos que teria nesse sentido».
E, referem as juízas, «num contexto de liberdade crítica e de expressão de opinião e pensamento, que embora suscetível de ferir a consideração do assistente não atinge uma carga determinante e exigente de uma pena criminal».