As divisões nas Forças Armadas: o ‘nós’ e os ‘outros’

Desde o dia em que um jovem é recebido nas fileiras da instituição militar, até ao dia em que as abandona, todo o ensino tem subjacente uma especificidade e uma ‘legitimidade própria’

A Defesa Nacional, como explicámos em textos anteriores, é um desígnio do Estado soberano, sendo a sua definição e condução um exclusivo do poder político legítimo, cabendo aos militares executá-la na parte que lhes compete.

Também temos alertado para as múltiplas dimensões da defesa nacional, para as variadas missões atribuídas às Forças Armadas e para a necessidade de um planeamento rigoroso da alocação de recursos que lhe estão associados.

Hoje abordamos uma temática frequentemente esquecida, menorizada e, não raramente, considerada um problema ‘dos outros’: o Ensino Superior Militar (ESM).

Trata-se de um assunto que ora é ignorado, ora fomenta posições apaixonadas, consubstanciando o exemplo mais acabado da incapacidade das Forças Armadas para adotarem uma posição de rotura com modelos que foram bons no passado mas que são, há bastante tempo, desadequados para os desafios e constrangimentos do século XXI.

Questionar-me-ão: mas o ESM é tão relevante que justifica que sobre ele reflitamos?

Sim.

Por inúmeras razões que procuraremos aclarar ao longo de vários artigos, mas sobretudo porque, sendo um imenso equívoco, o ESM constitui hoje o principal obstáculo à modernização das Forças Armadas. 

Consciente de que esta afirmação causará estranheza, perplexidade ou até mesmo um sorriso irónico em alguns leitores, peço que acompanhem as nossas reflexões com espírito aberto e vontade de palmilharem um ‘caminho’ pouco trilhado, mas necessário.

Antes de discorrermos substantivamente sobre o ESM, permitimo-nos trazer à liça mais uma constatação, que para nós é uma certeza há muito tempo: os ramos das Forças Armadas, por regra, cumprem as suas missões de costas voltadas uns para os outros.

Altas entidades militares surgirão a negar esta afirmação, mas as evidências ‘da prática’ são tantas, e os entraves a qualquer tipo de aproximação são tão frequentes e claros, que têm resultado num imobilismo sistémico. O qual apenas procura garantir interesses mesquinhos e corporativos – disfarçados, está claro, com o rótulo respeitável da ‘defesa do interesse do ramo’.

Convém recordar, porém, que o ‘interesse dos ramos’ não deveria existir, pois apenas há o ‘interesse nacional’, definido pelo poder político, cabendo aos militares somente  a responsabilidade e o mérito de salvaguardar a sua prossecução. Aliás, num Estado de Direito Democrático, seria muito estranho e inaceitável que se considerasse sequer a possibilidade de os ‘interesses dos ramos’ serem manifestamente diferentes dos ‘interesses nacionais’.

Dito isto, questionar-me-ão de novo: mas o que tem o ESM a ver com a relação de ‘costas voltadas’ existente entre os três ramos das Forças Armadas portuguesas?

A resposta é intrigantemente muito simples: tudo.

E tudo porque, desde o dia em que um jovem é recebido nas fileiras da instituição militar até ao dia em que as abandona, já bastante mais velho, todo o ensino que lhe é ministrado tem subjacente uma especificidade e uma ‘legitimidade própria’ que apenas existe no seu ramo; os outros ramos ou são ignorados ou referidos com um conjunto de adjetivos pouco abonatórios.

Esta prática vai-se entranhando, vai sendo inculcada, até fazer parte da ‘cultura da instituição’.

Aliás, mesmo, no interior do ramo das Forças Armadas em que o militar é integrado, vão-lhe sendo incutidas divisões artificiais mas que assentam em posturas, condutas e um infindável conjunto de procedimentos que ajudam a perpetuar ‘os seus’ – com o argumento de que são diferentes, têm cultura própria e são melhores.

Poderemos chamar-lhe Armas, Serviços, Classes, Especialidades, Unidade A, Unidade B ou Força Especial —  mas quem lhes pertencer, nem que seja temporariamente, tem de ‘vestir a camisola’, tem de adotar uma atitude diferente, sempre diferente!

É sempre o ‘nós’ e os ‘outros’: o ‘nosso’ ramo e os ‘outros’ ramos; as ‘nossas’ unidades e as unidades dos ‘outros’; os ‘nossos’ sistemas de armas e os sistemas de armas dos ‘outros’; a ‘nossa’ idiossincrasia e a idiossincrasia dos ‘outros’; os ‘nossos’ problemas e os problemas dos ‘outros’. Enfim, ‘a minha quinta é melhor que a tua’ e defendê-la-ei contra tudo e contra todos.

Ora, nunca conseguirá implementar-se uma reforma nas Forças Armadas portuguesas se (e enquanto) o Ensino Superior Militar não for totalmente integrado.

Mesmo que a reforma seja imposta aos militares, esta não será cabalmente implementada enquanto os princípios, os valores e os desígnios não forem comuns, pois tudo será pesado em termos de ‘ganhos e perdas para os nossos’. Desengane-se quem pensar que não é assim.

Para a semana continuaremos a desenvolver este tema.

*Major-General Reformado