O ponta-de-lança de um olho só

Bob Thompson perdeu uma vista na infância. O que não o impediu de assinar pelo Chelsea e marcar golos de olhos fechados

Robert Thompson, avançado-centro do Chelsea, passou grande parte da infância a brincar com foguetes e outras parvoíces pirotécnicas. Brincadeira estúpida, como sabemos, mas também nada nos garante que o jovem Thompson não fosse dono de uma inteligência caliginosa, sobretudo nesses tempos excessivamente bucólicos de Croydon, arredores de Londres, no ano de 1897.

Num desses momentos de reinação, o azar bateu à porta de Bob. Uma faúlha vazou-lhe o olho esquerdo. Foi então que decidiu dedicar-se a desenfados menos perigosos. Podia ter investido no tiro ao alvo, tendo em conta que no momento de fazer pontaria possuía a vantagem de prescindir do tradicional gesto de fechar um dos olhos, mas nada na sua biografia refere  queda para armas de fogo, tanto assim que ficou dispensado do serviço militar, logo ele que queria ter sido soldado. Escolheu o futebol. Ajeitava-se e fazia golos em barda, quase ia a dizer de olhos fechados, se o calembur me é permitido.

Em 1911, Thompson foi definitivamente levado a sério e assinou um contrato com o Chelsea. Era de tal forma prolífico que caiu no goto do público e da imprensa. A sua deficiência nunca se tornou embaraçosa. Certa vez perguntaram-lhe, de caras, com uma protérvia de fazer comichões no sangue: «Quando a bola lhe é passada para o seu lado esquerdo, como é que consegue perceber o que fazer a seguir». E ele, com um descaramento divino de Alencar do Eça: «Ora, fecho o olho bom e jogo de memória!».

Em 1915, Bob Thompson estava ainda no Chelsea. Metida na guerra de alma e coração, a Grã Bretanha dividia-se em relação ao futebol. A revista Punch publicou um cartoon que  se tornou histórico: um cavalheiro dirige-se a um rapaz equipado a rigor – «No doubt you can make money in this field, my friend, but there’s only one field today where you can get honour». Um murro bruto no estômago de todos os que se preparavam para disputar a final da Taça de Inglaterra, jogadores de Chelsea e Sheffield United. Para lá das Rochas Brancas de Dover não se acusa alguém de ser pouco honrado de forma leviana.

A Football Association respondeu de imediato na tentativa de contribuir para o esforço de guerra. Promoveu recolhas de fundos e disponibilizou os campos de futebol para utilização militar. Mas manteve a final: seria jogada em Manchester, em Old Trafford.

Eram precisamente 15h30 do dia 24 de abril, quando o encontro teve início. Pelas bancadas, um monótono tom empoeirado deixava claro que se tratava de um acontecimento fora do comum. A grande maioria dos espetadores usava farda. Eram soldados de todas as especialidades, de lanceiros a sapadores, de artilharia a infantaria, de cavalaria à força aérea. Muitos, por seu lado, estavam vestidos de branco. Tinham sido trazidos dos hospitais em redor, exibiam ferimentos relevantes e amputações bem visíveis de braços e pernas.

A final de Old Trafford de 1915 ficou conhecida como Khaki Cup Final, ou a final do caqui. Caqui dos uniformes, como está bem de ver. Mal chegou ao fim, o governo britânico determinou a suspensão de todas as competições futebolísticas. Como afirmava o cavalheiro da caricatura da Punch, era tempo de os jovens trocarem os relvados pelas trincheiras. E irem à procura da honra dos campos das Ardenas, do Marne ou de Verdun.

Tal como muitos dos militares que se sentavam nas bancadas, procurando proteger-se do frio desagradável do noroeste da ilha, Bob Thompson sabia como se sente um amputado. E, já agora, como se sente um doente, atacado que fora por temperaturas altíssimas provocadas pela deslocação de um ombro dias antes. Como muitos dos espetadores, entrou em campo com um braço enfaixado. O que terá valido uma certa simpatia entre a brigada do caqui.

«Cottonopolis was enveloped in a mantle of mist; its streets presented a surface of greasy mud». Cottonopolis é um ‘nickname’ que os ingleses gostam de usar em relação a Manchester. Um nevoeiro digno das charnecas de O_Cão dos_Baskerville, tomou conta de Old_Trafford.

O Sheffield ganhou facilmente por 3-0. Bob pouco pode fazer. Perdido na bruma, diminuído, dominado pela agressividade dos adversários que cedo perceberam as suas limitações, foi-se batendo com coragem mas nem sempre o coração chega para tudo. Quando o 17.º Earl of_Derby, Lord Stanley, um antigo militar, entregou a taça ao capitão George Utley, sentenciou: «You have played with one another  and against one another for the Cup; play with one another for England now». A ordem de marcha estava dada. Mais de 670 mil membros do British Army viram as suas vidas ceifadas. Thompson ficou em Londres. Marcando golos em jogos amistosos. Às vezes com a alma de soldado mais vazia do que a sua órbita esquerda.