A sina de Notre-Dame

O estilo gótico de Notre-Dame foi criado para prevenir fogos, aos quais a catedral não é estranha. O grande símbolo de Paris  já viu coroações, revoluções e guerras nos seus 856 anos. 

Há coisas que parecem certas, imutáveis, eternas. O sol que se ergue nos céus todos os dias, o som das ondas que cantam na praia, o ressoar dos séculos entre as paredes da Catedral de Notre- Dame. Entre coroações, convulsões históricas, guerras e gritos de revolução, a joia da arquitetura gótica sobreviveu a tudo, nos seus 856 anos de história. Nunca os parisienses imaginaram ver a sua mais majestosa catedral, sinónimo do destino francês no mundo, a arder perante os seus olhos, coroando de chamas o céu negro da Île de la Citê. 

Mas este não é o maior desastre enfrentado pela Catedral de Nossa Senhora de Paris. Aliás, o atual edifício, cuja construção demorou mais de dois séculos – entre 1163 e 1345 – foi construído para substituir outras duas igrejas, destruídas num incêndio. Ainda durante o século XIII a obra foi atingida por outro incêndio, que motivou muita da arquitetura da catedral.

«O estilo gótico, com as suas poderosas abóbadas de pedra e arcos elegantes, desenvolveu-se como uma espécie de retardante de incêndios, para proteger as catedrais do fogo», que arrasou muitas das catedrais românicas desse período, segundo o historiador medieval Emily Guerry à History Extra. Para o historiador, a sobrevivência da catedral, perante o incêndio desta segunda-feira – apesar da falta de manutenção dos últimos anos – é sobretudo «um testemunho da destreza dos construtores medievais». 

Esta necessidade de proteção do fogo explica que a arte gótica tenha sido «a única arte que conseguiu ocupar o espaço europeu inteiro», acrescentou ao El País Ruiz-Domènech, professor de história medieval na Universidade Autónoma de Barcelona. Mais um motivo para que Notre Dame seja «um símbolo da construção europeia, um símbolo da razão».

Contudo, as ameaças a Notre- Dame sempre foram muito além das chamas. O impetuo laicista da Revolução Francesa naturalmente visou o maior símbolo da poderosa Igreja francesa, que sofreu graves danos e pilhagens durante esse período – chegaram a ser decapitados vários apóstolos esculpidos na fachada, confundidos com reis franceses. Foi Napoleão Bonaparte que veio em socorro da catedral – que renomeou de Templo da Deusa da Razão – onde acabaria por ser coroado imperador. 

Nem o levantamento da Comuna de Paris, nem a ameaça das sucessivas guerras mundiais derrubariam a catedral. Continuou a ser o lar de algumas das mais sagradas relíquias da Igreja Católica – incluindo a coroa de espinhos que se diz ter sido colocada na cabeça de Jesus Cristo durante a crucificação. O artefacto foi trazido para França pelo rei São Luís IX, no século XIII, após o seu regresso das cruzadas. A relíquia foi retirada atempadamente, no incêndio de segunda-feira, não tendo sofrido danos (ver págs. 46-47).

Mas Notre-Dame é muito mais que um monumento de pedra e madeira. É tanto uma estrutura física como imaginária, por onde passaram todos os caminhos de França. Foi sob a luz rosada dos seus vitrais que foi beatificada Joana D’Arc, queimada na fogueira por combater os ingleses, tornada símbolo da soberania francesa. Foi o orgão centenário de Notre-Dame que soou na missa após a libertação de Paris, durante a Segunda Guerra Mundial. Foram os sinos desta catedral que tocou o Quasimodo, na mente de todos os leitores do livro Nossa Senhora de Paris, a celebrada obra de Vítor Hugo, depois adaptada num conhecido filme da Disney, o Corcunda de Notre Dame. 

Terá sido o livro de Vítor Hugo que inspirou a renovação de Notre-Dame, no séc. XIX, pelo arquiteto Eugène Viollet-le Duc, após quase um século de abandono. Foi então que foi adicionado o icónico pináculo derrubado no fogo desta segunda-feira. Teme-se que dentro da estrutura estivessem relíquias dos santos padroeiros de Paris, São Dinis e Santa Genoveva – ossos, dentes e cabelo dos santos, que era costume preservar na Idade Média.

Mesmo salvaguardando a estrutura principal e a memória de Notre-Dame, há coisas que não se recuperam. O icónico teto da catedral – cujas traves de madeira arderam completamente – nunca poderá ser reconstruído da mesma maneira. Terão de ser utilizados novos materiais e novas tecnologias. É que em França já não existem árvores com a altura necessária para construir um obra com essa dimensão. Sinal dos tempos que passam.