Há uns anos largos, uns bem contados cinquenta, o barco que me trazia do Funchal tinha acabado de chegar ao cais da Rocha de Conde d’Óbidos. Era o Funchalense. Havia dois iguais: o outro era o Madeirense e chamavam-lhes os bananeiros porque era sobretudo de carga e não de passageiros. Desembarcar levava o seu tempo. O meu pai trazia o carro preso no convés, era preciso desamarrá-lo. Fiquei entretido num pequeno camarote onde, durante a viagem os senhores fumavam e conversavam e as senhoras jogavam à canasta ou ao crapaud. Havia uma televisão. Um aparelhinho miserável de pequeno e desacertado, ainda assim um luxo que, lá na ilha, era preciso subir ao Pico do Areeiro para, num café, se espreitar volta e meia a TV Canárias.
Isto brotou-me tudo da memória, assim de supetão, por causa de Chibanga. Do grande Ricardo Chibanga, o Divino Negro. Na televisãozinha manhosa do Funchalense estava a dar, em direto, uma tourada, e eu preso às imagens relutantes, traços cinzentos subindo e descendo, lentos, as imagens desfasadas. E, negríssimos, Chibanga e o touro.
Ricardo colocava o joelho no chão e hipnotizava o touro. O touro olhava para ele e deixava de ser touro e era apenas boi, manso, submisso. Não havia traços cinzentos a subir e a descer no ecrã arredondado que os distraíssem um do outro. Ambos geminados naquela negritude de que falavam Césaire e Senghor.
Há muitos, muitos anos, eu perdia-me nas páginas dos jornais que traziam as partidas e as chegadas dos barcos ao porto de Lisboa. E ficava ali sonhando com carreiras das Índias que me levassem pelas costas de África para o oriente que fica para lá do oriente. Não sei que horas eram quando o Funchalense entrou, nesse dia, na barra do Tejo. Provavelmente cinco em ponto da tarde. Eu gostava que tivessem sido cinco em ponto da tarde. «Ay qué terribles cinco de la tarde! Eran las cinco en sombra de la tarde!».
Lorca de olhos postos em Chibanga e no touro embevecido: «Las heridas quemaban como soles». Depois, Ricardo Chibanga fazia uma festa no focinho do touro e esse movimento equivalia à estocada perfeita do matador. Beijava a palma da mão direita e soprava para o alto e para o público. A ovação batia-lhe no peito como uma vaga de calor vinda lá da sua Lourenço Marques natal.
De súbito, estava eu preso às imagens de Chibanga na televisão minguada do Funchalense e, às cinco em sombra da tarde, um burburinho entrou-me pelos ouvidos. Gritos e risos à mistura. Movimento de passos apressados. E eu, na minha curiosidade infantil, à procura da amurada onde pudesse espreitar as inopinadas acontecências. Não era um touro, mas a memória embaciou-se-me entretanto. Uma vaca mais impaciente ou um novilho excitado pela irritação dos homens. Nenhum deles tinha a sedução fascinante de Ricardo Chibanga. Corriam atoleimados por entre contentores e caixotes de madeira atrás do bicho escouceante numa facécia de precários cowboys sem Texas Jack.
Há muitos, muitos anos, fiquei à espera que Chibanga chegasse ao cais da Rocha de Conde de Óbidos envolvido no seu sortilégio de príncipe de lantejoulas e, com o movimento prestidigitador de um segundo de deslumbre, fizesse ajoelhar o tourinho de brincadeira, o olhasse sorrindo até ao fundo das pupilas inchadas de receio, e lhe falasse com a voz calma dos que conhecem os segredos mais profundos dos que habitam o País dos Inquietos. E ele, sossegado, compreendido, pacificado com a realidade indelicada dos humanos, lamber-lhe-ia as mãos no ponto mais alto da humildade.
Alguém me disse, ou se calhar li em algum lado, que Ricardo Chibanga morreu. Ri-me. Que tonteria! Que disparate! Quem é que mata um matador? Nem mesmo Deus, se tivesse a decência de existir.
«Y el toro, sólo corazón arriba!». O touro exausto. 450 quilos de carne diluida à força de chicuelinas. Espumando pela boca num cansaço sem remissão. O orgulho não o deixa ajoelhar-se. O sol bate de chapa nas lantejoulas do fato do toureiro e um caleidoscópio toma conta da arena e cega toda a gente. Escuridão completa, por segundos, por milésimos de segundo.
«Num mundo de coisas raras/Faz uma pega de caras/Não te deixes vencer», dizia o fado do filme A Última Pega.
Era raro um toureiro negro.
Sereno, luzidio, de uma escuridão intensa.
Chibanga não foi o único negro na arena. Veio com ele, lá da mesma Mafalala de Eusébio, Carlos Mabunga, que o destino tratou de esquecer.
O touro, olhos nos olhos.
Os dois negros, divinos negros. Cavalheiros ambos. Medem-se pelos palmos da coragem, da teimosia. E Chibanga sorria, finalmente, vencedor da morte. Ele, só ele, conseguia ser mais negro do que o touro. E o touro sabia-o melhor do que ninguém.