Laos. O mistério da guerra que nunca existiu

Há trinta anos, pouco depois de Vientiane e Luang Phabang terem aberto a porta aos estrangeiros, o País das Promessas por Cumprir ainda falava a medo do tempo em que foi ‘the other theater’, território neutro brutalmente bombardeado pela força aérea dos Estados Unidos instalada no Vietname.

A instalação sonora do hotel teima na repetição continuada de velhos temas dos anos 60 interpretados por uma qualquer orquestra ligeira à maneira de Burt Baccarat. O ar condicionado mantém as temperaturas suportáveis, convidando a uma preguiça sem horários no conforto dos cadeirões de verga estrategicamente situados para o lento vaivém de empregados e clientes. O rapazinho de pele escura que serve de porteiro usa uma farda larga demais que lhe fica mal e tira, volta e meia, do bolso do casaco um pano sujo com o qual esfrega a enorme vidraça da porta que dá para a rua de terra batida, como são a maior parte delas em Vientiane. Tem na cara os traços dos hmong, esse povo das montanhas que os lao loum, os homens do vale do Meckong, teimam ainda em desprezar por se terem tornado, ao tempo da guerra do Vietname, mercenários dos americanos, treinados pela CIA.

O Laos é um país secreto e um país de segredos. E os segredos da ‘Guerra Que Nunca Existiu’ são, certamente, dos mais bem guardados. E dos que provocaram, após a revolução de Maio de 1975, – que muitos observadores ocidentais compararam aos acontecimentos de 1968, na então Checoslováquia, graças à forma como, em Praga e Vientiane, frentes nacionais suportadas por partidos marxistas-leninistas, efectuaram mudanças de poder à custa de uma combinação de ameaças militares e da intimidação de exércitos estrangeiros estacionados nas suas fronteiras, prontos a intervir a qualquer momento – maiores clivagens sociais num povo de divergências étnicas quase imperceptíveis. Certamente que os jovens alemães e belgas que se dessedentam com garrafas de meio litro de Bia Lao, a cerveja local que os franceses apelidaram de Biére Larue, e comem camarão nas esplanadas da Thanon Fa Ngum, espalhadas ao longo do rio, a correr castanho e a fazer fronteira com a Tailândia que fica na outra margem, à sombra protectora dos eucaliptos, das figueiras e das árvores de teca, não se lembram sequer que este já foi um palco de guerra e um cenário de destruição. Uma guerra obscura que os interesses ocidentais tentaram manter escondida do mundo. De tal ordem que o nome do país foi pura e simplesmente banido de todas as comunicações oficiais e os participantes passaram a referir-se-lhe como… «the other theatre», como contaria mais tarde Christopher Robbins no seu livro The Ravens, o nome de código para os pilotos americanos no Laos.

Em 1962, o Acordo de Genebra foi claro ao reconhecer a neutralidade do Laos no conflito que opunha os Estados Unidos ao Vietname do Norte, proibindo a presença no país de todo e qualquer militar estrangeiro. «Mas», conta Robbins, «os pilotos que atuavam no ‘outro teatro’ eram militares que voavam vestidos à civil – blusões de cabedal; T-shirts, óculos escuros, calças de ganga. Pilotavam máquinas obsoletas e sofreram a maior percentagem de perdas de toda a guerra da Indochina – cerca de 50%». Dois anos mais tarde, os norte americanos tinham cinco centros de operações especiais espalhados pelo país e nos quais actuava pessoal da CIA e da USAF (Força Aérea dos Estados Unidos) em apoio aos pilotos thai e hmong recrutados entretanto para servirem uma frota heterogénea como poucas.

Só que uma guerra combate-se a dois. E, no Planalto das Jarras, uma área subdesenvolvida nos arredores de Phonsavan onde se encontram as misteriosas jarras de pedra que chegam a pesar seis toneladas, os norte-vietnamitas montaram o seu quartel-general. 

500 quilos de bombas por pessoa!

Durante nove anos, o Laos tornou-se um dos campos de batalha de um conflito a que era alheio, profundamente violado no seu desejo de se manter neutro. Também é no livro de Robbins que se pode ler esta descrição arrepiante de um piloto americano: «Havia alturas em que as condições climatéricas sobre o Vietname do Norte eram tão más que tínhamos de regressar (ao Laos) em ondas. Além do mais, na fase mais dura da guerra, nós, os que pilotávamos bombardeiros, tínhamos ordens expressas para regressar com os depósitos de bombas vazios. O que acontecia então era descarregarmos o material em zonas que, em princípio, não faziam parte dos nossos objectivos militares». 

Cerca de dez toneladas de bombas por quilómetro quadrado foram despejadas sobre o Laos entre 1964 e o final de 1972. Num país de pouco mais de quatro milhões de habitantes, o menos populoso de toda a Ásia, tal número equivale à média horrenda de mais de quinhentos quilos de bombas por pessoa!

No Séc. XIV, num dos edifícios extraordinários de Angkor, uma princesa khmer, filha do rei Jayavarman Paramesvara, casou-se com um dos filhos de Chao Pi Fha, chefe exilado de uma região montanhosa do norte. O jovem chamava-se Fa Ngum e foi educado na corte de Angkor por monges budistas. Foi ele que conduziu um exército khmer à reconquista da terra de seu pai. O seu novo reino chamou-se Lan Xang, a Terra do Milhão de Elefantes e do Pára-sol Branco. 

O Laos também é um país de fábulas. É preciso lê-las, escutá-las…

Há pedaços da História do Laos que parecem tirados dos livros de Emílio Salgari. Há um deles que me encanta de sobremaneira: o episódio da guerra contra os Ho. Ho é o nome que os thai dão aos chineses de Yunnan. Os acontecimentos datam do Séc. XIX, quando a dinastia manchú dos Qing restabeleceu a sua autoridade sobre toda a província do Yunnan e os rebeldes Taiping e muçulmanos se refugiaram aos milhares no Laos e no Vietname, organizando-se em bandos de malfeitores sem escrúpulos, dedicando-se à pilhagem e ao assassínio das suas vítimas. 

Os Taiping distinguiam-se pelos seus estandartes amarelos; os muçulmanos, aos quais se haviam juntado grupelhos de diversas tribos, levantavam bandeiras vermelhas e negras.

Tudo isto pode ter uma envolvência romântica e cinematográfica, mas as barbaridades dos ‘Pavilhões Vermelhos’ tornaram-se intoleráveis. De Khammuan, no sul, a Xieng Khuang, no norte, o Laos transformou-se num campo de comportamentos atrozes. Em 1873, os bandidos devastaram Vientiane, destruindo todos os seus templos budistas. Ameaçado nas suas fronteiras, Chulongkorn, o Rei do Sião, enviou duas grandes expedições armadas no espaço de sete anos, na tentativa de dispersar os Ho. Ambas foram dolorosamente derrotadas. O Laos era o paraíso dos fora-da-lei. Só em 1886, uma expedição gigantesca de soldados siameses, à qual se juntou um forte contingente de militares lao, foi capaz de esmagar os bandidos vindos do Yunnan. Aliás, esta terceira investida de Chulongkorn foi terrível: o Sião dominou o reino de Xieng Khuang, tomou Muong Theng (Dien Bien Phu, em vietnamita, cidade da terrível derrota francesa) e anexou uma enorme fatia da província de Tonkin. Assustados, os senhores de Luang Phrabang pediram proteção aos franceses. Como resultado, a França anexou toda a margem esquerda do Meckong.

Bordéis mais limpos que hotéis…

«Vientiane is exceptional, but inconvenient», escrevia Paul Theroux no seu The Great Railway Bazaar. «The brothels are cleaner than the hotels, marijuana is cheaper than pipe tobacco, and opium easier to find than a cold glass of beer». Não posso testemunhar a limpeza dos bordéis nem as artes estranhas de uma empregada de bar que Theroux conheceu, capaz de fumar pela vagina num espetáculo noturno. Mas posso testemunhar a sordidez de alguns bares do Quarteirão Chinês. Dele se parte pela Samsenthai até Phiavat, Kaognot e Si Muong. Os muros cor de açafrão do templo de Si Muong fervem de calor ao sol das duas e meia da tarde. Dizem-me que este é o templo mais procurado da cidade. Está aqui desde 1563, quando o rei Setthatirat decidiu estabelecer a capital do reino em Vientiane. Um enorme buraco foi aberto no dia de se iniciar a sua construção. Nele teria de ser colocado o lak muong, o pilar da cidade. Mas antes de baixar o lak muong sobre o buraco, era preciso encontrar uma rapariga virgem que cedesse ao sacrifício de nele ficar enterrada viva. Talvez as paredes avermelhadas de Si Muong relembrem a cor do seu sangue. Uma cor que se espalha na terra também ocre que invade os passeios e as margens das ruas e avenidas.

Anos e anos a fio, este lugar ficou fora do mundo.

Agora o turismo avançou e tomou conta de tudo.

As cidades modernizaram-se, foram à procura de satisfazer aqueles que aqui chegam com dólares e euros no bolso.

Mas eu estive no Laos muito antes disso. Há trinta anos era um lugar parado no tempo…

O Laos é um país de segredos e de promessas por cumprir. Quando a noite começa a cair sobre Wieng Chan, a Cidade da Lua ou a Cidade do Sândalo, que os franceses transformaram em Vientiane, chega com a escuridão que toma conta das ruas mal iluminadas por velhos candeeiros de luzes amarelas e baças uma sensação de desistências e abandonos. As motoretas vão continuando a levantar pequenas nuvens de poeira nas ruas transversais aos boulevards ladeados pela laje dos passeios, ondulados à custa do crescimento desmedido das raízes das árvores, mas o trânsito, que é geralmente pacífico e pouco caótico, por muito que isso se estranhe por estes cantos orientais do mundo, desapareceu por completo, à exceção da passagem mastodôntica de um ou outro camião militar que se some rapidamente a chocalhar as suas decrepitudes. 

Muang Chanthabuli é o bairro das casas coloniais, das lojas chinesas onde se vende toda a espécie de bricabraque, dos templos históricos e dos edifícios governamentais. É o espaço antigo de uma colónia que não fornecia riquezas (nunca produziu mais do que 1% das exportações de toda a Indochina francesa) e que se transformou no exílio de alguns milhares de funcionários públicos que iam mantendo a governação burocrática deste pedaço sombrio do império. 

Numa das extremidades da Thanon Lan Xang, homens e mulheres preparam-se já, agitadamente, para o Talàat Sao, o Mercado da Manhã que começará a funcionar daqui a pouco, ainda o sol não há de raiar no horizonte a entornar tons barrentos nas águas inquietas do Meckong. Os tuk-tuks, na sua maior parte importados da Tailândia, zumbem de quando em vez ao redor do Patuxai e das complicadas formas do arco de cimento construído com o material que foi inicialmente comprado para a pista do novo aeroporto que não passou do projeto. Procuram algum estrangeiro retardatário que se esqueceu do caminho do hotel. Para lá do arco, no início dos jardins de Muang Saisettha, a lua reflete o brilho dourado do Pha That Luang, o Grande Stupa Sagrado, e da sua pirâmide de ouro rodeada de degraus pelos quais os peregrinos sobem até ao cume da sua fé. A noite encheu o céu e, finalmente, a cidade dorme um sono de aldeias. Um luxo ao qual não costumam entregar-se as capitais da Ásia.

Depois, vou. Num avião pequeno que parece não ter força para subir para lá das nuvens.

Mais para Norte, a calma é ainda maior. 

Em Luang Phabang as pessoas esqueceram a guerra e para elas não há promessas, apenas a verdade quotidiana do rio, da selva e das montanhas. Uma paz absoluta cortada pelo meio da tarde quando os meninos saem das escolas e a Thanon Pothisalat, que atravessa a cidade de um lado ao outro, se enche de bicicletas e o silêncio estremece ao som das vozes infantis e do tingalingaling das campainhas. Os turistas estancam subitamente, surpreendidos com o movimento que dura pouco. Desde que foi aberta aos estrangeiros, em 1989, Luang Phabang habituou-se às figuras estranhas de sandálias e calções que alugam bicicletas nas lojas da Thanon Kitsalat, se misturam com os fatos laranjas vivos dos monges na descoberta dos wats, os templos, e se entregam, noite dentro, à inércia das varandas de madeira dos restaurantes onde se passeiam tranquilamente as osgas às dezenas e se bebe uma mistura inesquecível de licor de banana e vinho de arroz convenientemente apelidada de Return of the Dragon.

Pela manhã, as crianças estão fechadas nas salas dos edifícios brancos com ventoinhas no tecto e de gelosias azuis ao longo das suas janelas enormes. A humidade é grande e escorre das mangueiras em que se penduram os macacos e aves de penas coloridas e nomes intraduzíveis. Às vezes o silêncio é tão profundo que se ouve, distintamente, como uma música ao longe, a litania das lições lidas em coro nessa língua meio cantada e na qual o som do R não existe. 

Os meninos aprendem a história perdida na lenda dos velhos povos do Meckong que viviam oprimidos pela força do rei do Sião e a história do reino de Lan Xang, a terra do milhão de elefantes, que se transformou, um dia, no Laos, o país do elefante das três cabeças. Falar-lhes-ão da guerra da Indochina e dos tempos gloriosos da independência, bem como da reforma moderna do chintanakan mai, o novo pensamento. Mas ninguém lhes contará, certamente, os horrores da guerra que nunca existiu. Para ela está reservada a maldição dos esquecimentos.

Às cinco horas da tarde, em Luang Phabang a vida agita-se. Bandos de garotos fardados de camisa branca e calções ou saias cinzentas espalham-se pelas ruas que, para um lado ou para o outro, terminam nas margens do Meckong ou do Khan. As sombras começam, devagarinho, a alongar-se. Os barcos compridos, de motor fora de bordo, rosnam contra a corrente em manobras rápidas para se desviarem das rochas pontiagudas que parecem os dentes afiados dos monstros da água. Alguns regressam de Pak Ou, a gruta onde se escondem mais de mil estátuas do Buda. 

Também ele, com o seu sorriso imutável, guarda segredos e promessas por cumprir.