Quirguistão. Em memória do Grande Cão

A frase é sonora: ‘Se Genghis Khan estivesse vivo, não faltava a estes jogos’. Os jogos são os Jogos Nómadas. De dois em dois anos, em Cholpon-Ata,nas margens do lago Issyk-Kul, uma manifestação extraordinária de desportos tradicionais da Ásia central, toma conta da excitação dos espectadores (nómadas, claro!) que montam nos campos em redor as…

Bishkek – A estrada que liga Almaty a Bishkek percorre-se ao sabor das contrariedades que vão surgindo. Alek, guia só com uma mão no volante, seguro da sua perícia. O Toyota negro é confortável mas parece ranger a cada zigue-zague súbito que evita um buraco mais traiçoeiro ou uma fenda no alcatrão. Alcatrão quando o há: de quilómetros em quilómetros, a terra batida das obras que avançam ao ritmo lento próprio das estepes da Ásia central trazem consigo bolsas de areia e, até ao horizonte, pejado pelo branco da neve das montanhas de Tian Shan que, lá mais para oriente, se cruzarão com o sopé do Pamir, a paisagem ganha uma sensação antiga difícil de descrever.

Aldeias sonolentas espojam-se ao sol; cavalos esquálidos pastam em planaltos secos; mesquitas minúsculas surgem, de vez em quando, numa curva do caminho; velhotas dobradas ao peso de um molho de madeira e da multiplicação das décadas parecem sinais únicos de uma humanidade invisível.

Bishkek já teve muitos nomes. Este último data de 1991, da independência do Quirguistão, ou Quirguízia, de uma União Soviética em dispersão. Começou por ser Chu, no canato quirguize da Rota da Seda, nos primórdios de 1800. Depois Frunze, por causa do general russo Mikhail Vasielivich Frunze. Parece que Bishkek é apenas o remate final da coruptela da expressão Peshagakh: O Lugar que Fica à Beira das Montanhas.

Lenine ainda resiste numa das praças centrais da cidade, junto ao edifício do Parlamento, onde as ruas se alargam e ganham o verde das árvores. Lenine no alto do plinto de uma estátua volumosa, daquela que fomos vendo tombar um pouco por toda a Rússia que temos atravessado, de São Petersburgo aos confins da Sibéria.

Os poucos turistas que demandam a cidade vão à procura das pistas de esqui de Alatau ou da placidez das margens do lago de Issyl-Kul. E aqui começa uma outra história.

Temüjin nasceu em 1162, mas nunca ninguém o conheceu por Temüjin depois de ter deixado de ser uma criança. Foi o Grande Cão, como lhe chamaram em português os livros de História da minha escola secundária, Khan, o rei, o Khan dos Khans, Ghengis Khan, fundador do Império Mongol que uniu as maiores tribos nómadas da Ásia, desde as praias do Mar do Japão até ao Levante e à cordilheira dos Cárpatos. Não há país em redor, Cazaquistão, Turquemenistão, Uzbequistão, Tajiquistão, que não sinta ainda a influência do seu poder lendário. Porque todos eles são, também países de povos: cazaques, turquemanos, uzbeques, tajiques, quirguizes.

É preciso ir aos lugares, falar com as pessoas, ver com os olhos do coração o que nos diz o galope das eras, para se perceber a alma de um país. Ficar em casa não vale. Mas em casa podemos ficar no conforto de uma leitura que ajude a descobrir a força dos destinos. Imaginem um mundo heróico de guerreiros extraordinários, cavaleiros exímios, e a sua luta permanente pela sobrevivência num local inóspito onde os Invernos parecem infinitos castelos de gelo que trazem os habitantes das cidades flutuantes presos em grades de cristal. Sim, parece algo saído da imaginação de Tolkien mas, muito, muito antes de Tolkien, houve os Manas, a que alguns chamaram a Ilíada das Estepes, nascidos da tradição dos poemas passados oralmente, de geração em geração, narrativas empolgantes da forma como os muçulmanos se bateram com a valentia dos deuses contra as hordas invasoras de infiéis.

A literatura é um bem intocável e irretocável mas trouxe consigo o fim dos bardos. Os bardos quiguizes cantavam laudas aos seus heróis e esses cânticos laudatórios ecoavam no oco do vale de Ala-Archa, não longe de onde nos sentamos, num restaurante da Togolok Moldo a beber uma cerveja chamada Bukhara, como a cidade dos azulejos azuis do Uzbequistão. «Planícies negras; colinas cinzentas/A face da Terra foi vencida!/Brilham as cotas de malha/Os cavalos de combate relincham alto/O guerreiro gigantesco recebeu/O golpe profundo em silêncio».

Quem atravessa os campos quase vazios de gente à beira da estrada que aqui nos trouxe, não imagina a riqueza dos cantos nómadas. São eles apenas rumores? «O exército caminha com um ruído infinito/Estende-se para além de tudo o que os olhos podem ver!» O homenzinho que tem um kalpak enfiado na cabeça rapada, o chapéu bicudo dos quiguizes, branco como os pico de Pobedy, o mais alto do país (7439 metros de altitude), junto da fronteira com a China, fita-nos com insistente curiosidade. Talvez nem ele saiba de cor um verso do Manas Epos, mas pode ser que tenha lido num jornal qualquer, que o seu antigo e supra-poderoso presidente, Askar Akaev, não teve dúvidas em gastar mais de oito milhões de dólares do escasso orçamento do Quirguistão, para as festas de celebração dos 1000 anos desta epopeia. Afinal, para ele, Manas, o guerreiro dos guerreiros, estava apenas um degrau abaixo do divino e milhares e milhares de pessoas foram prestar homenagem junto ao seu túmulo, em Talas, no vale de Besh-Tash. Dizem os poemas, de boca em boca, que ele conquistou toda a China. Embora só na realidade fátua da poesia.

 

Os jogos!

Cholpon-Ata quer dizer, literalmente, Vénus-Pai. Um espírito protetor. Fica um pouco para ocidente de Bishkek, junto ao lago de Issyk-Kul. É a cidade dos sanatórios. E também um dos pontos turístico do Quirguistão. Desde 2014, sede dos Jogos Nómadas que têm lugar a cada dois anos. Participam nestes jogos, durante uma semana, equipas vindas do Cazaquistão, do Azerbaijão, do Uzbequistão, do Turquemenistão, do Tajiquistão e das províncias russas de Sakha, Buryatia, Altay, Kalmykia e Bashkortostão. Mas também já a Mongólia e o Afeganistão se fizeram representar. Tendo a Turquia declarado que pretende organizar o evento no próximo ano, no mês de Setembro.

Os acontecimentos de Cholpon-Ata têm características profundamente étnicas. E o festival não se resume à parte desportiva.

No hipódromo local, a dois quilómetros do centro da cidade, disputam-se as disciplinas preferidas da maioria dos povos nómadas da Ásia central.

 

Entre o corpo e o cavalo…

O alysh, por exemplo, é uma espécie de luta livre levada a cabo com cintos. Os competidores vestem calças e camisas largas e tentam derrubar o seu adversário através de agarrões e puxões nos cintos. Já o salburun é bem mais complexo. Reúne várias especificidades, que vão desde a caça com águias, caça com taigans, uma raça quirguize de cão parecida com os galgos, corridas de taigans e tiro com arco montado a cavalo. Como seria de esperar, e a despeito da profunda tradição destas práticas, as entidades de defesa dos animais têm-se batido para que o salburun seja proibido como desporto. Até ao momento, os organizadores dos Jogos Nómadas mantêm ouvidos moucos em relação às reclamações. Kyrchyn-Jailoo continua a ser o palco preferido para as exibições dos maiores especialistas. Jailoo é a palavra quirguize para pasto e o salburun ultrapassa largamente os limites de um hipódromo. Só uma destreza ilimitada permite a conjugação da caça com arco a cavalo e a utilização dos cães ou das águias simultaneamente. Um campeão é visto e admirado como alguém que vai para lá das mais vulgares particularidades humanas, com direito a ser recordado para sempre nos Manas Epos, se eles se tivessem prolongado pelo tempo até aos nossos dias.

Há quem diga heroicamente, com orgulho: «Se fosse vivo, até o Ghengis Khan viria a Cholpon-Ata. E, quem sabe?, talvez até participasse nas corridas de cavalos ou nas provas de Er Enish, nas quais os cavaleiros, confinados a um círculo com trinta metros de diâmetro, nus até à cintura, procuram derrubar-se um ao outro com golpes nos ombros, nos flancos ou nas pernas. Os combates tornam-se violentos. Há três diferentes categorias: abaixo dos 70 quilos; entre os 70 e os 90 quilos; acima de 90 quilos. O Grande Cão, que assumiu dez esposas, parece ter sido homem de grande envergadura e, pelo número de bodas, de uma paciência inesgotável. Combateria com os maiores. Gigantes espadaúdos à garupa de montadas vigorosas, como muito antes de ele ter chegado à terra dos quiguizes, vindo lá do rio Onon, já os habitantes desta terra descreviam: «Lanças pontiagudas eram agitadas, as cabeças dos homens rolavam no chão/A Terra atingiu o ponto do colapso!»

Não, não se pode dizer que faltava drama aos bardos das estepes. E não, não ficariam satisfeitos com os jogos de toguz korgul, praticados em tabuleiros de madeira com nove buracos frente a frente, sendo dois maiores, os kazna, onde cada opositor vai guardando as pedras que toma do adversário. Ou o mancala, ainda mais burilado, cinco peças por cada jogador atiradas para uma tábua em gestos medidos no sentido dos ponteiros do relógio, sendo as que ficam fora do bloco consideradas perdidas. Regras confusas, movimentos lentos, parecem chocar de frente com a filosofia do ambiente. E, no entanto, faz sentido. Depois da refrega, o repouso. Depois do esforço físico, o intelectual.

Excessivamente intelectual, diriam os bardos impacientes com enfado. Prefeririam o kurash, uma luta livre não tão livre quanto isso pois é proibido agarrar da cintura para baixo, sendo obrigatório derrubar o inimigo só a golpes de braços e de tronco. Ou o kokburu, com doze cavaleiros de cada lado num campo de 200 metros de comprimento e 70 de largura e uma baliza de 4.4 metros por 1.2 em cada topo. Uma hora de jogo. O golo é concedido quando uma carcaça de carneiro ultrapassa o risco de baliza. Só quatro cavaleiros por equipa podem estar no recinto ao mesmo tempo e as substituições podem ser contínuas. O cadáver do bicho serve, basicamente de bola. É trocado entre os elementos do mesmo conjunto e os outros procuram afanosamente intercetá-lo. O público, esse, diverte-se mesmo que isso provoque a repulsa dos que sentem que os restos do carneiros estarão a ser desrespeitados ou profanados. Os nómadas não se preocupam grandemente com isso. Sabem que, no final do dia de esforços brutos, terão à sua espera um banquete no qual a carne de cavalo cozida é a iguaria principal.

Nestes tempos modernos, os marshrutka, pequenos autocarros, vão e vêm de Bishkek até Cholpon-Ata assoberbados de passageiros, num vaivém de latas periclitantes que ameaçam tombar nos desvios mais bruscos. Durante a semana dos Jogos Nómadas há sempre alguém que procura os pequenos quiosques onde se vendem bilhetes a esmo, e se não houver lugar nas bancadas do hipódromo, haverá certamente nos campos que rodeiam o lago azul-ferrete por onde se espalham os yurts montados sem organização aparente.

O movimento de rotação do planeta parece ter reduzido a velocidade. Não mais 465 metros por segundo. Aliás, os segundo aqui não existem. Nenhum pedaço de tempo se mede em menos de um minuto. Ou mesmo de uma hora. Por isso, as horas sobram nas ruas de Bishkek e ninguém parece ter pressa de ir para qualquer lado.

Estamos presos na alma da Ásia. O centro do continente. As montanhas em redor refletem a luz eterna das neves que nunca se transformam em água. «Os olhos estão completamente cheios de tanto para ver…».