Hei, Iker: levántate y mira la montaña

Em Espanha há pelos porteros o mesmo fascínio que existe pelos toreros. Talvez por causa da sua solidão. Uns na arena; outros na grande área. O guarda-redes é o único jogador que se abandona. Quando a equipa sai numa horda de ataque desenfrada, ele não é tido nem achado. Fica lá atrás a tomar conta…

Em Espanha, os grandes porteros ficaram escritos. Leiam-nos como se os vissem voar com aqueles braços que não passam de asas que algum Deus menor se esqueceu de acabar. Zamora e Iribar, Urruti e Ramallets, Ariquistáin e, de todos o meu favorito, Guillermo Bonifacio Eizaguirre Olmos, o legionário.
Em 1936, Guillermo era guarda-redes do Sevilha. Chamavam-lhe ‘El Ángel Volador’. Tinha um dom inexplicável de dominar os ângulos com a precisão de um geómetra euclidiano. O émulo de Ricardo Zamora, ‘El Divino’. «Si Zamora era santo y seña en el Madrid F.C., Eizaguirre era poco menos que el héroe de un equipo sensacional. El líder de una pandilla de artistas, fiel legado de la ya famosa escuela sevillana». Ficaram em lado diferentes da História. História com maiúsculas.

La Legión’ também ficou conhecida como ‘Tercio de Extranjeros’. Desde 1920 que se batia nas regiões controladas por Espanha no Norte de África, tal e qual como a Legião Estrangeira dos franceses. Quando a Guerra Civil de Espanha eclodiu, ‘La Legión’ optou por apoiar o ‘Bando Sublevado’ que levaria Francisco Franco ao poder em 1939. Eizaguirre escolheu ficar do lado dos vencedores, embora ainda não o soubesse quando abandonou de vez as balizas do Sevilha para se tornar num militar. Optou pela farda sorumbática, ele que equipava geralmente com uma camisola espampanante de riscas castanhas e amarelas com uma espécie de quadriculados nas faixas mais escuras. Um ano antes, no dia 12 de maio de 1935, a Espanha tinha ido a Colónia, ao Estádio Müngersdorfer, bater a seleção da Alemanha nazi por 2-1, com dois golos do asturiano Lángara, ‘El Cañonero de Oviedo’, que já havia marcado cinco a Portugal no terrível terramoto de Chamartín de 1934: 0-9. Isidro Lángara era uma alma livre. Foi perseguido pelo regime do Caudilho e teve de se refugiar na América Latina. Também ele optou por qual dos lados quis combater.
Em Colónia, perante mais de oitenta mil fanáticos que acreditavam que a Alemanha era pura e simplesmente invencível, os espanhóis registaram o escândalo da tarde: Eizaguirre estava sob os postes;Zamora sentava-se no banco. Um jornal escreveu, solene: «Al banquillo, inmóvil en el asiento, semblante serio. Ahí estaba. Zamora. El Divino. El mito. El gran portero español de los tiempos pasados y de los que habrían por venir. Insignia del poderoso Madrid Fútbol Club. El hombre que en sí mismo movía ascendencias en el fútbol patrio factótum del Gobierno cedista». A CEDA era um partido de simpatias fascistas comandado porGil Robles, aglutinando as Juventudes Católicas de Ação Popular.

A suplência deZamora e a titularidade de Eizaguirre ganhou contornos políticos. O governo de Alejandro Lerroux tirou proveito da tranquibérnia. Enquanto o país se desfazia e caminhava para uma das grandes carnificinas de todos os tempos, havia os que enfunavam a pena na defesa de ‘El Divino’ e os que idolatravam ‘El Ángel Volador’. Em Sevilha, por uma, outra e outra vez saía de campo em ombros. O público ia buscá-lo ao centro do relvado do Estadio de Nervión e era como se tivesse tido direito a rabos e orelhas.

Se Zamora criou as zamoranas, saídas aos pés dos adversários esperando que lhe desviassem a bola para um dos lados e, no último segundo, sacudi-las com o cotovelo, Eizaguirre foi o autor de las palomitas, pinchos súbitos por entre os defesas, na horizontal, corajosas e sofisticadas. Estudou Direito, foi tenente durante a Guerra, terminou a vida como militar em 1986, com 77 anos.

Em Espanha, Iker Casillas está na companhia dos grandes. Faltou-lhe sempre aquele momento de desarrumação que o levasse a sublevar-se contra a imagem de bom rapaz que é apenas o desalento dos que se esperam que sejam loucos. Devia ter escutado Victor Jara: «Hoy es el tiempo que puede ser mañana/Líbranos de aquel que nos domina».

E saltar aquele risco de giz que serve de fronteira em a normalidade e a lenda. Até à passada semana, fugira ao drama dos guardametas.

De um momento para o outro foi obrigado à defesa que todos temem: a defesa da sua vida. Talvez não volte a ocupar o espaço de uma baliza. Mas escutará o grito da existência: «Levántate y mira la montaña/De donde viene el viento, el sol y el agua». E ficará com a certeza: «Juntos iremos unidos en la sangre/Ahora en la hora de nuestra muerte…». Por é assim que as coisas simplesmente são.
afonso.melo@newsplex.pt