As ondas, se calhar, regressam

Jack Cock, apesar da desagradável cacofonia, tinha uma habilidade formidável para ser goleador e tenor, nos palcos e nos campos

As ondas nunca regressam. Não sei se quando os Genesis cantavam esta frase  «Ripples never come back» – pensavam no mar da Cornualha, esse bico da Grande Ilha para lá da Mancha, onde as águas são azuis como as raparigas azuis de olhos azuis de Tony Banks e Mike Rutherford. Uma vez estive no Pentire Point e nos The Rumps. Foi lá que Lawrence Binyon escreveu For the Fallen, o poema dedicado aos que caíram na I Grande Guerra: «At the going down of the sun and in the morning/We will remember them». Haverá sempre jovens que nunca envelhecerão, tal como John Gilbert Cock, o primeiro jogador da Cornualha a vestir a camisola da seleção de Inglaterra, em 1919.

Cinco anos antes, John estava em França. Até certo ponto, também vestia a camisola de Inglaterra: a farda de sargento-mor do exército britânico. Um dia, a mãe recebeu a notícia do seu desaparecimento em combate. Foi para mães como as de Cock que Binyon publicou o seu poema no The Times no dia 21 de setembro de 1914: «With proud thanksgiving, a mother for her children/England mourns for her dead across the sea/Flesh of her flesh they were, spirit of her spirit/Fallen in the cause of the free». Só que no caso de John, a onda voltou para trás e ele reapareceu, vivo, num campo de batalha, carregando às costas um companheiro que morrera pelo caminho. Não era homem para deixar para trás os companheiros. Nem mesmo os companheiros mortos. E, por isso, espetaram-lhe no peito, um pouco ao lado do coração, a medalha de Bravery in the Field a par de outra que premiava a sua galanteria em combate.

Antes de se bater nos campos da Flandres, Jack Cock, como lhe chamavam, sem grande respeito, acrescente-se, já que a cacofonia é deveras desagradável, batia-se galantemente nos campos de futebol, primeiro de forma absolutamente amadora, depois como profissional no Huddersfield, no Brentford, e principalmente no_Chelsea, no Everton, no Plymouth e no Millwall, com a notoriedade de se ir tornando um avançado-centro cada vez mais assassino à medida de que os anos lhe  iam carregando as pernas.

Em 1930, Jack estava no Milwall. Outro Jack, Jack Raymond, realizador de cinema, resolveu que o futebol era um bom tema para um filme e deitou mãos à obra em The Great Game, para muitos o primeiro totalmente dedicado ao nobre jogo bretão. Terá sido ou não, não vou aqui discuti-lo, seria como discutir se as ondas regressam ou não, portanto, «sail away away», e algo que não merece dúvidas é que criou uma série de clichés para todos os filmes com futebol pelo meio meio que viriam a seguir.  A personagem principal é Dicky Brown, um jovem ponta-de-lança que se bate, mais denodadamente do que galantemente, por um lugar no ataque do Manningford FC, um clubezinho medíocre que, graças a ele, vence a Taça de Inglaterra. O galanteio guardava-o o manhoso Dicky – o trocadilho é nixonianamente intraduzível – para a filha do presidente do_Manningford FC. Desagradado com o galifão, o patrão insta o treinador a deixá-lo de fora da equipa para que jogue o veterano e menos sedutor Jim Blake, interpretado por Jack Cock, esse mesmo, que fora medalhado por garbo em 1914 mas decaíra nas preferências feminis nos dezasseis anos que se seguiram. Lá está: «Ripples never come back/Gone to the other side/…».

The Great Game não é tão longo como um jogo de futebol, limita-se a 79 minutos, mas marcou os espetadores pelo realismo das imagens. Eram tão reais que eram verdadeiramente reais. Como aconteceu com O_Leão da Estrela, de Arthur Duarte, em Portugal, em 1947, com cenas de um FC Porto-Sporting que metia os Cinco Violinos e tudo, mais charuto e mais tens aí vinte paus que me emprestes ò Baratinha, mas tiradas de um jogo para ilustrar outro que nunca existiu.

A maior parte de The_Great Game é rolada em Stanford Bridge, que já tinha sido casa de Jack Cock entre 1919 e 1923, e claro que o povo adorou até porque outros jogadores famosos da época, como George Mills, Andy Wilson, Sam Millington e Billy Blyth, fizeram parte da trama. E Raymond fez o favor de dar uns instantes a um rapazinho com ambições a ator, um tal de Rex Harrison, que se estreou na tela e, por seu lado, também foi tão herói de guerra como Cock, mas na II Grande Guerra, naturalmente, como piloto da Royal Air Force.

Eu sabia que os Genesis não tinham surgido por aqui à toa. É que Jack Cock, além de ator-jogador (em 1920 já tinha surgido no filme mudo The Winning Goal), tinha uma voz formidável e usava-a no balneário, antes dos jogos, para desfiar canções de alento aos seus companheiros. Pretensão nunca lhe faltou. Usou a sua arte de tenor para subir aos palcos de Brick Lane. Faltou-lhe cantar: «For an hour a man may change/For an hour her face looks strange». Quem diz hora, diz hora e meia.

afonso.melo@newsplex.pt