Há vidas que, por muito que pareçam cruzar-se são como o postulado euclidiano das paralelas que só se encontram no infinito. Por exemplo, Gerrit Keizer ficou conhecido pelo Gigante Voador e Gerrit Keizer ficou para a posteridade como o Príncipe Anão. Como está bem de ver, logo assim à primeira linha, Gerrit Keizer não é Gerrit Keizer. Não sei que postulado será este, mas concebo-o da forma mais simples possível: um Gerrit Keizer muito alto pode esconder um Gerrit Keizer muito baixo. Este Gerrit Keizer muito baixo mereceu mesmo que Jan van der Mast escrevesse um livro sobre ele – De Kleine Keizer (Wervelend epos de kleinste man ter wereld), algo que traduziria, com a liberdade que o meu desconhecimento sobre a língua neerlandesa me permite, como O PequenoImperador (Epopeia em redor do homem mais pequeno do mundo). O imperador funciona, obviamente, como trocadilho entre o antropônimo e o título de nobreza, até porque o pequeno Keizer de imperador não tinha nada a não ser o nome, bem pelo contrário, foi figura circense e andou exposto em excursões por Berlim, Londres, Paris e principalmente pelos Estados Unidos.
Com 80 centímetros de altura, Le Prince Mignon, afrancesaram-no assim, esteve num museu de curiosidades de Chicago dirigido por Mr. O’Donnnell que, à porta, gritava: «Welcome in our museum! We’ve got the grandest exhibition of living curiosity on the globe!!!». Depois apresentava o pobre Gerrit sentado na mão de um apache gigante que tinha, ao lado, outro gigante apache e eram apresentados como gémeos idênticos embora só fossem parecidos pelos penachos que usavam na cabeça. Isto passou-se no início do século passado e por essa altura havia uma mórbida paixão pela teratologia.
Gerrit Keizer e Gerrit Keizer não foram absolutamente contemporâneos. O Gerrit Keizer maior era um tipo verdadeiramente atlético e com mãos do tamanho do mapa do Canadá. O Gerrit Keizer mais pequeno, que acabaria por se casar com uma tal de Johanna Schier, ainda mais pequena do que ele, como se tal fosse possível, sentir-se-ia absolutamente confortável sentado na mão do seu homónimo. Bem mais confortável, aposto, do que na mão do tal apache gémeo mas pouco.
Andava o minúsculo Keizer por Chicago, a fazer espantar meia-dúzia de saloios, quando o grande Keizer, farto de ser o suplente do guarda-redes Jan de Boer, do Ajax, resolveu tomar o caminho de Londres. De certa forma também foi exposto. Nas balizas do Margate, um clubezinho sem ambições do condado de Kent.
Ao contrário do outro Gerrit, este não era de ficar sentado na mão de qualquer apache ou sequer do último dos moicanos. Era tão hiperativo que ganhou a alcunha de Flying Dutchman, como se tivesse um pacto com o diabo como o desgraçado holandês que foi obrigado a vaguear num filibote até ao final dos tempos. Não tardou a seguir para o Arsenal e, na altura, o Arsenal era a grande equipa de Herbert Chapman, o homem que inventou o WM.
Poucos conhecem a história de Gerrit Keizer. Vi-me e desejei-me para descobrir pormenores sobre ela, mas não se preocupem, diverti-me à brava, ainda por cima porque, pelo meio, descobri pormenores da vida do ínfimo Gerrit Keizer, que também poucos conhecem. Foi por causa de Gerrit Keizer, o espigadote, que durante anos os jogadores holandeses foram proibidos de trabalhar em Inglaterra. Por causa de Keizer e de um australiano chamado Rudi Hiden, tido como o mestre dos ângulos, capaz de tapar todos os acessos a sua baliza só pelos cálculos euclidianos que processava em segundos, tapando todos os espaços iminentemente vazios. Também não sei como se chamará a este postulado, mas agora já não vou a tempo de me debruçar sobre ele.
Sempre ciosos da sua intimidade – e foi por isso que o bom Deus os enfiou todos numa ilha –, os ingleses trataram de, através da TheFootball Association, de impedir que Hiden assinasse um contrato com o Arsenal, contrato esse que devolveria Gerrit à sua entediante vida de suplente. Ora, como titular, não se mostrou um keeper por aí além. Era mais circense, como o Keizer raquítico. A crítica tratava-o com bonomia: ia de divertido a errático. Alguns jornalistas consideram-no mesmo um louco varrido que vagueava pela sua grande-área falando sozinho e não prestando a mínima atenção ao que estava a decorrer nos arredores dela. Além disso, o Holandês Voador continuava tão apaixonado pelo seu Ajax que, depois de jogar no sábado em Inglaterra, se metia num avião para ir, no domingo, fazer uma perninha, ou uma mãozinha, nas reservas do Ajax, no domingo.
Há vidas que parecem destinadas a cruzar-se, e tantoGerrit Keizer como Gerrit Keizer eram suficientemente especiais para isso. Ter-se-ão encontrado no infinito, como as linhas paralelas.
afonso.melo@newsplex.pt