Se há assunto que não vale a pena discutir com um italiano são mães. Sabem tudo sobre mães – Mamma Mia! – e muito sobre Madonnas e Madonninas. Também não vale a pena discutir com eles sobre automóveis, já agora. E, vendo bem, também não convém trazer à baila nem ópera, nem pizzas nem esparguete. Futebol muito menos e a Juventus, então, é uma causa perdida. Não era à toa que Antonio de Curtis, o divino Totó, dizia: «Audax Fortuna Juventus». Enfim, o conselho geral é que não vale a pena discutir com italianos e ponto final. Quando começam a gesticular já temos o conflito decidido a favor deles.
Perdi-me aqui um bocado, mas ia começar com a história daquela pequenina rua deRoma que tinha três restaurantes. O relacionamento era pacífico entre proprietários até que um resolveu avançar para as novas técnicas de marketing e colocar, na porta, um cartaz pomposo que dizia: «Aqui serve-se a melhor comida de Roma!». O vizinho do lado, decidiu responder-lhe com elegância. Também recorreu a um cartaz: «Aqui serve-se a melhor comida da rua!». O terceiro, perante do desplante da concorrência, optou por ser direto: «Aqui come-se!».
Quando ando pela Barra lembro-me várias vezes desta história das trattorias romanas.Tirando as cervejarias do costume, o Farol e o Márito, com os seus finos a explodirem de gás e os seus pregos clássicos, não há um lugar no raio da terriola onde se possa dizer: aqui come-se. Ano após ano após ano, a degradação gastronómica da Barra leva a que toda a gente que deseje desfrutar de uma boa refeição para os caminhos da Costa Nova, da Gafanha da Nazaré ou de Aveiro.
Foi com supresa que o meu querido amigoTó Batata – em Águeda os nomes costumam ser bastante particulares no que respeita a alcunhas – me levou à Moratti, do Zé das Bikes, que é de Anadia, e me vi frente a frente com uma burrata de trepar pelas paredes, seguida de um repasto próprio de príncipes. Verdadeiramente, ali come-se!
O Tó é um daquele tipo de pessoas que provoca em mim uma tranquilidade agradável. Não sei se é pela sua total ausência de vaidade, se pela calma com que vive interiormente – e sei bem o que sofreu no meio de muitas tempestades –, se por aquela necessidade de que todos se sintam bem em seu redor. É todo ele tão sem pressas que nos habituámos, desde miúdos, a que chegue sempre atrasado.
Foi assim, numa noite agradável de Verão no fim, contrariando esta tristeza de uma Barra onde dificilmente se come com decência, assistindo com melancolia à debandada geral de quem parte para só voltar para o ano, setembro e tudo, Bécaud lá no fundo da memória – «Les caravanes le camping-gaz/Au grand soleil/La grande foire aux illusions/Les slips trop courts, les shorts trop longs/Les Hollandaises et leurs melons…» – que por causa do Batata me lembrei do Batatinha e há muito tempo que queria escrever sobre o Batatinha mas foi-se-me escapando.
Por causa da serenidade do Batata fui buscar algures, nas gavetas da memória, a serenidade do Batatinha: «Ao receber a bola com uma serenidade pasmosa, num à vontade admirável, parte sem hesitar com o seu belo estilo intuitivamente perfeito, corre ao longo do ‘touch’, centrando, passa, dribla, ou combina com o interior, variando sempre que é preciso o seu jogo, adaptando-o às circunstâncias de uma forma que nos assombra e nos deixa perplexos. É, realmente, um verdadeiro ‘virtuose’ da bola». Escrevia-se maravilhosamente nos jornais da altura e a altura é 1917, tempo de Grande Guerra, e de Alberto Augusto chegar ao Benfica. Alberto Augusto era, como já perceberam, o Batatinha.
OBatatinha era de uma genica formidável. De tal ordem que jogava em qualquer posição, guarda-redes incluído. «Ímpeto, rapidez de execução, dribling primoroso, pontapé certeiro e forte com qualquer dos pés… O seu jogo vistoso, filigranado, prende a atenção e conquista o agrado do público pela grande soma de perfeição e segurança com que executa todas as jogadas. Quando Alberto Augusto tem a bola nos pés há sempre da parte dos seus partidários uma esperança, pois a maneira como domina o esférico é de tal forma arrebatadora que temos a impressão de que ele conseguirá realizar o que pretende sem que ninguém a tal o possa obstar». Bela prosa! Belíssima prosa!
O Batatinha ficou para a história como o primeiro marcador de um golo com a camisola da seleção nacional. Contra a Espanha. Ainda por cima ao enorme Zamora. Dia 18 de dezembro de 1921. Colocou a bola na marca e, ao baixar-se, olhou a posição e a crença do grande guarda-redes. Zamora olhava insistentemente para o canto direito e quando o árbitro Barrette apitou, Alberto torcendo o corpo a enganar o notável ás e shootando quasi com o contraforte da bota, enfiou a bola nas redes sem remissão. Zamora piscou-lhe o olho: «Enganaste-me bem, maroto!». E o Batatinha, malandro, sorriu.
afonso.melo@newsplex.pt