Palestina. ‘Não vai sobrar terra’

Netanyahu fala numa ‘oportunidade única’ para anexar o Vale do Jordão – ‘uma séria violação da lei internacional’, alertou António Guterres. 

Palestina. ‘Não vai sobrar terra’

Na próxima semana Israel vai a votos pela segunda vez em menos de seis meses, após o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não ter conseguido montar uma coligação de Governo. As negociações não foram facilitadas pelo facto de o procurador-geral israelita, Avichai Mandelblit, se preparar para avançar com várias acusações de corrupção contra Netanyahu – enquanto os seus críticos o acusam de querer maioria para conceder imunidade a si mesmo. A campanha aqueceu ainda mais com a promessa de Netanyahu de anexar o Vale do Jordão, na Cisjordânia. Algo que constituiria «uma séria violação da lei internacional», segundo o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Cerca de 2,5 milhões de palestinianos vivem na Cisjordânia, um território ocupado por Israel desde 1967. Cerca de 400 mil israelitas vivem na região, em colonatos fortificados, considerados ilegais pela ONU. A região do Vale do Jordão representa cerca de 30% da Cisjordânia e é nela que, segundo os acordos de paz de Oslo – ratificados por ambos os lados no início dos anos 90 –, seria construído um Estado palestiniano.

«Eles estão a tentar legalizar a ocupação com a anexação. Querem dizer ‘Isto [Vale do Jordão] é parte de Israel, não são territórios ocupados’», diz ao SOL o embaixador palestiniano em Portugal, Nabil Abuznaid. «Não vai sobrar terra nenhuma para a paz e para um Estado palestiniano. É o fim». O representante da Autoridade Palestiniana – estabelecida nos acordos de Oslo – assegura que, caso o plano de Netanyahu vá para a frente, perante a passividade do resto do mundo, isso «destruirá qualquer fé na lei internacional e na comunidade internacional».

Se a esperança dos palestinianos de terem o seu próprio Estado for destruída «será substituída por pessoas que não veem luz ao fundo do túnel, que veem a violência como único caminho», alerta Abuznaid – que teme «um novo ciclo de violência» com o plano de Netanyahu. «Não sei como é que vamos convencer o comum dos palestinianos a aceitar Oslo, a aceitar a situação como está», desabafa.

‘Trancados’

Contudo, muitos já perderam a fé há muito tempo. «O mundo todo está a apoiá-lo [Netanyahu]. O que é que os palestinianos podem fazer?», questionou Hussein Atiayat, um palestiniano de 65 anos, ouvido pelo The Guardian. Atiayat vive no Vale do Jordão, e como tantos outros dos seus vizinhos é um refugiado, expulso por soldados israelitas da sua aldeia natal há décadas.

Caso Netanyahu consiga o que quer, a vila de Atiyat, Auja, fará parte uma estreita faixa de território à volta de Jericó, rodeada por território israelita (ver foto). «Vamos ficar trancados na nossa vila», prevê Atiyat. «A vida vai ser miserável».

‘Importância estratégica’

Caso a anexação do Vale do Jordão se concretize, além de Jericó, toda a Cisjordânia ficará rodeada por Israel. «As pessoas estarão sob cerco», considera o embaixador palestiniano, explicando que «a Jordânia perderia a sua fronteira histórica com a Palestina». Algo que permitiria a Israel controlar ainda mais diretamente o acesso de pessoas e bens à Cisjordânia, à semelhança do que acontece com Gaza.

«Israel é um país muito estreito e o Vale do Jordão é a última linha de defesa contra poderosos países árabe», explica ao SOL o embaixador israelita em Portugal, Raphael Gamzou. «Sugiro que veja as declarações feitas no contexto da campanha eleitoral», acrescentou, considerando que o Vale do Jordão «tem uma importância estratégica para Israel» e que «há consenso quanto a essa importância entre a maioria dos partidos políticos [israelitas]».

À direita, a proposta de Netanyahu encontrou um apoio entusiástico. Ao centro, os seus principais adversários, da coligação Azul e Branca, liderada por Benny Gantz, apressaram-se a afirmar que afinal a ideia até tinha sido deles. «O Vale do Jordão é parte de Israel para sempre», lê-se num comunicado dos centristas, citado pela revista Time – em que o primeiro-ministro é congratulado por «mudar de ideias e adotar o plano da coligação Azul e Branca».

Recursos naturais

Enquanto o embaixador israelita vê a importância do Vale do Jordão sobretudo a nível da segurança do seu país, o embaixador palestiniano salienta que esta «é uma região importante para a agricultura, para os colonos israelitas – e serve para [Netanyahu] ganhar votos». 

Muitos palestinianos queixam-se que esses recursos já estão nas mãos de Israel. «Enfrentamos desafios contínuos, particularmente quanto ao acesso aos nossos poços e em mantê-los para regar as nossas culturas», contou à Al Jazira Hussein Saida, um agricultor palestiniano da região de Jericó, que garantiu: «Os nossos poços estão de facto sob controlo israelita».

Contudo, ao mesmo tempo que tenta legalizar o seu controlo do território, Netanyahu também prometeu «não anexar um único palestiniano». Ou seja, que os palestinianos continuarão a viver sob tutela de um país do qual não são cidadãos, governados por um Executivo que não votaram para eleger. «Os palestinianos não podem querer estar dos dois lados», responde o embaixador israelita, questionado sobre o assunto. Gamzou sublinha que não é coerente os palestinianos «não se envolverem no processo de paz, rejeitarem tudo à priori e por outro lado pedirem o estatuto de cidadãos plenos».

‘Oportunidade única’

Quando o embaixador israelita acusa as autoridades palestinianas de «rejeitarem tudo à priori», umas das coisas a que se refere é o tão falado acordo de paz para o conflito israelo-palestiniano, prometido pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – considerado um dos presidentes mais próximos de Israel nas últimas décadas.

Trump chamou-lhe o «negócio do século» – mas o seu projeto foi rejeitado de imediato pelos líderes palestinianos, após serem conhecidos rascunhos através dos media. A ideia da Casa Branca seria que incentivos económicos – na ordem de 50 mil milhões de dólares (cerca de 45 mil milhões de euros) – fizessem os palestinianos esquecer-se do que aparentemente faltava do plano: um Estado palestiniano.

Apesar do falhanço da iniciativa, Netanyahu parece bem consciente da importância de uma administração norte-americana que lhe é tão favorável quanto a administração Trump. «É uma oportunidade histórica, uma oportunidade única», garantiu o primeiro-ministro israelita, quando prometeu anexar o Vale do Jordão. «Netanyahu vai apoiar Trump com alguns votos de judeus nos Estados Unidos. Agora, Trump está a ajudar Netanyahu a conseguir mais votos. Infelizmente, quem paga o preço é o povo palestiniano», acusa o embaixador da Palestina.