Centenário de “Os Belenenses”. Sonho de uma noite de verão

Segunda-feira, dia 23 de setembro, o Clube de Futebol «Os Belenenses» (assim mesmo, com aspas) cumpriu 100 anos de existência. Nasceu da vontade e da teimosia de um homem chamado Artur José Pereira, dito o melhor jogador de todos os tempos e ao qual Portugal virou as costas.

Artur José Pereira: com o exagero habitual com que os portugueses defendem o que é seu, durante anos recebeu o panegírico de melhor jogador de todos os tempos. Rapaz de famílias humildes, nascido na Rua do_Embaixador nº 69, em Belém, pois então, no dia 16 de Novembro de 1889, não tardou a deixar-se encantar pelo nobre desporto bretão, isto é o foot-ball que não tardaria a ser simplesmente futebol.

Na sua adolescência, já depois da construção da praça de touros do_campo Pequeno, o jogo abandonou essa nova zona de Lisboa e entornou-se para a beira Tejo, em frente ao_Palácio de Belém, pelas Terras do Desembargador. Passatempo prediletos da criançada, a trapeira provocava uma atração irresistível. Artur assistiu ao aparecimento da Associação do_Bem e do_Grupo dos Catataus, às compitas renhidas do Hipódromo, à fundação do primeiro clube grande da zona, o Sport Lisboa (ainda antes, claro está, da fusão com o_Benfica), na Farmácia Franco, na Rua de Belém, esteve-se marimbando para os estudos, não foi além da antiga 5.ª classe, começou a ser presença assídua nas segundas e terceiras categorias do recém-nascido Sport União Belenense.

1908: Artur, na companhia dos seus companheiros de brincadeiras infantis, Henrique Costa e Luís Vieira, entra para o Sport Lisboa e Benfica. A malta via-o com a bola nos pés e era inconfundível. Passou a ser chamado, regularmente, à seleção da Associação de Futebol de Lisboa, fez parte da famosa digressão ao Brasil em 1913, consta que causou tão boa impressão que foi convidado a por lá ficar, mas tinha um sonho e esse sonho não contemplava a distância imensa de um_Atlântico.

Há quem conheça Artur José Pereira por ter sido o primeiro trânsfuga do futebol nacional. Chocante, ou nem por isso. Problemas disciplinares no Benfica, alguma soberba, protagonismo exagerado, levaram ao rompimento de relações com a direção do clube e a uma suspensão que teve algo de humilhante para aquele que era considerado, unanimemente, o melhor jogador de Portugal. Apareceu o Sporting. Foi o bom e o bonito! Francisco Stromp, seu amigo, acenou-lhe com um ordenado de 36 escudos por mês. Ah! E o Sporting, clube do visconde de Alvalade, dava-se ao requinte de ter banhos quentes. Não era para todos.

Benfica e Sporting tornaram-se desavindos por sua causa. Como diria Pitigrilli, mais do que inimigos, eram irmãos. Irmãos ressentidos para sempre.

 

O sonho cumpre-se!

Viera a guerra, a I Grande Guerra. Francisco Pereira, seu irmão, foi combater a Moçambique e, ao contrário de muitos, voltou. E jogou no Benfica. Artur fazia amigos com facilidade. Um deles foi Mário Duarte, filho do Mário Duarte que também viajara até Brasil, em 1913. Guarda-redes. Tinha a alcunha de O Calmeirão. Foi com ele que desabafou, certo dia: «Caspite! Isto dói-me. Somos todos de Belém e jogamos uns contra os outros. Faz lá algum sentido?» Lá está, era o sonho.

Havia um problema que o incomodava. Era gente de bem, não virava costas aos camaradas. Sobretudo a Francisco Stromp, que lhe abrira as portas do_Sporting às escâncaras. Matutou. Embaraçado, meteu uma cunha a Jorge Vieira, segunda grande figura dos leões. Vieira, com paninhos quentes, abordou Stromp. Francisco conhecia Artur. Sabia qual o sonho que o empurrava como um vento de leste a enfunar as velas dos galeões para lá da barra do_Tejo. Parece que terá dito, simplesmente: «Jorge, diz ao Artur que vá à merda. Se quer fundar o tal clube de Belém não vou ser eu a contrariá-lo».

Artur José Pereira não terá perdido muito tempo a esfregar as mãos de contente antes de as pôr à obra.

Percorreu Belém, de lés a lés, arregimentando companheiros de tertúlia e futebol. Tertúlia do_Café Martinho, paragem obrigatória de todas as figuras do bairro, e futebol na praia, vício indomesticável.

Acácio Rosa, seguramente o mais destacado de todos os dirigentes de «Os Belenenses», contou um dia que em certa noite canicular de agosto, Artur cumpriu o sonho de juntar, num banco de jardim da Praça Afonso de Albuquerque, um grupo do qual faziam parte Francisco Pereira, seu irmão, Henrique Costa, Carlos Sobral, Joaquim Dias, Júlio Teixeira Gomes, Manuel Veloso e Romualdo Bogalho. A ideia estava em marcha. Receberam o apoio incondicional de Virgílio Paula e Francisco Reis Gonçalves. Multiplicaram-se os encontros. No dia 23 de setembro de 1919, o sonho de Artur cumpriu-se. Nasceu o Clube de Futebol «Os Belenenses», assim mesmo com aspas. Acácio Rosa escreveu: «Sonho de uma noite de verão».

No seu clube de futebol só de Belém, Artur assumiu o papel de jogador e de organizador do futebol. Marimbava-se para a burocracia. Tinha pressa de montar uma equipa que pudesse rivalizar com o Sporting e com o Benfica, ainda por cima com este último fragilizado pela saída de vários jogadores que quiseram regressar às suas origens das Terras do Desembargador. Não foi por isso, como é óbvio, que deixou de comparecer na primeira Assembleia Geral do Clube, marcada para o dia 2 de outubro, no Belém Clube da Calçada da Ajuda. As discussões foram acesas, os temas postos sobre a mesa mereceram toda a atenção. Henrique Costa propôs as cores oficiais do equipamento: camisola azul com vivos brancos e, no peito, a representação da Cruz de Cristo. Afinal, Belém era lugar de caravelas e de demandas de mares nunca antes navegados. O emblema, em formato de escudo, contemplaria um fundo branco e duas faixas diagonais em azul, com a cruz sobreposta a vermelho e as letras CFB em amarelo. Os calções seriam pretos.

Carlos Sobral tinha outras ideias: camisola totalmente branca, calções pretos e, sobre o coração, a Cruz de Malta.

Democraticamente, votou-se: o projeto de Costa levou a melhor – 20 votos contra sete. Os azuis estavam prontos para entrarem em campo.

Henrique Costa era o mais velho de toda aquela alegre rapaziada, espécie de capitães da areia de um arrebatamento contagiante. Artur fez questão de que ele fosse o sócio n.º 1, mesmo que todos insistissem para que o próprio recebesse essa honra já que fora o ideólogo do edifício clubístico que agora se erguia. Recusou de forma perentória. Ficou como sócio n.º 2.

 

Campo Grande, 8 de Novembro

Em 1916, Mário Pistacchini arrendou os terrenos da família Pinto da_Cunha e mandou erguer bancadas em redor do que viria a ser durante anos o estádio do Sporting. Eram as antigas instalações do_Lisboa Football Club e foi precisamente aí que «Os Belenenses» realizaram o primeiro jogo de futebol da sua agora centenária existência.

Convidado para a cerimónia, o Vitória Futebol Clube, popularmente conhecido por Vitória de Setúbal. Alinharam garbosamente: Mário Duarte, Romualdo Bogalho, Carlos_Sobral, Francisco Pereira,_Artur José Pereira, Arnaldo Cruz, Aníbal dos Santos, Edmundo Campos, Manuel Veloso, Alberto Rio e Joaquim Rio.

Nomes para a eternidade.

Mas Artur não estava completamente satisfeito. Nunca conseguira juntar todos os companheiros para um treino consistente e o conceito de conjunto era, ainda, uma simples quimera. Devido à sua vida profissional, muitos jogadores não tinham comparecido nas sessões de trabalho programadas. À falta de uma realidade verdadeiramente competitiva, sempre fundamental no espírito de Artur José Pereira, a equipa de Belém resolveu presentear o público com uma curiosa coreografia. É_Marina Tavares Dias, no seu fundamental História do Futebol em_Lisboa, que a descreve: «Todos juntos, debaixo de uma das balizas, foram saindo por ordem para os respetivos lugares, abrindo em forma de leque: cinco, três, dois, um».

5-3-2-1. Cinco avançados, pois então. Clássico!

O 1 era Mário Duarte. O keeper calmeirão.

Não deixemos, para já, o auxílio de Marina Tavares Dias. E do testemunho que publica de Mário Duarte: «Calçávamo-nos na Rua do_Embaixador, em casa do Artur e do seu irmão Francisco, cuja mãe, sempre solícita, nos atendia carinhosamente, e atravessávamos Belém em calções para irmos treinar no largo do jardim onde está a estátua de Afonso de Albuquerque que podemos dizer, sem blague, foi o padrinho de «Os Belenenses». Nesse mesmo largo, na casa mais a poente das três casas velhas e pitorescas ali existentes que ainda conservam a coluna ao estilo de uma época remota, teve o nosso clube a primeira sede. E do balcão que orla a janela central do primeiro andar dessa curiosa e modesta casa, assistiu, um dia, a um desafio do Belém o então Presidente da República, Dr. Teixeira Gomes».

O primeiro campo do Belenenses foi o Campo do Pau de Fio. Situava-se na Rua Vieira Portuense e os jogadores, para lá chegarem, caminhavam descontraídos pelos passeios, já antevendo o prazer da compita, cruzando-se com os transeuntes e com os elétricos que passavam.

O público, esse, juntava-se debaixo das arcadas dos edifícios à falta de assentos. Era a festa! A bola pinchava entre os conjuntos opostos, volta e meia havia alguém atingido na cabeça, a precisar de cuidados, a descontração do local manteve-se até à inauguração das Salésias, nove anos mais tarde, quando o crescimento do clube já fazia dele um dos três grandes de Lisboa, a par de Benfica e Sporting, tal e qual Artur José Pereira sonhara e pusera em prática nessa noite de verão em que fazia um calor de ananases.

 

Medrou a inveja

Henrique Costa foi o primeiro treinador de «Os Belenenses». Mais uma vez, Artur José Pereira decidira manter-se na subalternidade. A experiência que vivera no Benfica acalmara-lhe a arrogância própria da juventude e do endeusamento a que fora sujeito por todos os que se tinham apaixonado pelo jogo mais popular do universo. Ninguém colocava em causa o seu estatuto de alicerce do clube, figura emblemática e omnipresente, mas preferia dedicar-se ao ensinamento dos colegas sob a supervisão do seu companheiro mais velho.

Um ano após a sua fundação, «Os Belenenses» entravam, finalmente, nas competições oficiais, neste caso no 13.º Campeonato de Lisboa. Na fase inicial, colocado no Grupo A, jogou contra o Benfica e contra o Clube Internacional de Lisboa, o CIF.

Não havia forma de impedir que houvesse, por parte dos benfiquistas, uma certa atitude revanchista. Ao fim ao cabo, tinham sido vários os dissidentes que trocaram a camisola vermelha pela azul. No dia 25 de janeiro de 1920, o Campo do Pau de Fio assistiu à vitória histórica dos rapazes da praia sobre os moços do emblema da águia: 2-1. Ah! O orgulho belenense em todo o seu esplendor. «São assim os entusiastas do grupo da praia. Querem ao seu clube como se quer a uma pessoa de família. Amam-no e comovem-se com os seus triunfos. Choram e afligem-se com as suas derrotas. Belém é, assim, um clube que vive das almas… É o clube popular por excelência – o Belenenses. O seu entusiasmo sincero e comovedor, cheio de ingenuidade talvez – é enorme como um gigante de alma primitiva», registou uma prosa do jornal Eco dos Sports.

Apurado para a fase final, com sete pontos em quatro jogos, e com uma goleada sobre o CIF (8-0) pelo meio, todos esperavam com ansiedade pelos confrontos que decidiriam o campeão. Benfica,_Belenenses, Sporting e Vitória de Setúbal entravam em testilha. A vitória por 1-0 sobre os leões demonstrava que o grupo da praia estava pronto para tudo. A final, a duas mãos, foi frente ao Benfica. Primeiras lágrimas azuis. A dor azul de Belém: duas derrotas difíceis de engolir, 1-2 e 0-2.

Artur José Pereira tinha cumprido 31 anos mas não perdera a magia. O seu futebol filigranado, o seu domínio irresistível sobre a bola, a sua presença temida pelos adversários. Tudo era um pólo aglutinador do entusiasmo belenense. Os companheiros seguiam-no até ao fim do mundo, se preciso fosse. Formavam, a seu lado, na sua retaguarda, uma fortaleza de ambição e de coragem que ficariam como imagem de marca de um clube que carregava ao peito a cruz que enfeitava as velas de marinheiros temerários.

Na sombra, a inveja medrava.

Os conflitos principiaram.

O jornal Os Sports, por causa de um jogo de brincadeira entre dois grupos de atletas do Belenenses, como que fez uma soturna previsão do futuro que agora fere os adeptos azuis como um punhal enterrado entre a terceira e a quarta costela: «Divisões n’«Os Belenenses». Há fações que não se entendem. O clube está à beira da rutura. Em breve haverá dissidências para formar nova agremiação». Ah! Estariam «Os Belenenses» destinados a viver no plural? Artur José Pereira foi aos arames.

A comemoração do segundo aniversário do Belém foi festiva até não mais. Um calor extremo de popularidade tomou conta do bairro e do público que assistiu a um desafio amigável contra o Casa Pia que assinalou a data. Mas, se a unidade interna era uma realidade insofismável, era igualmente verdade que as questões institucionais chegaram ao ponto de quebrar a corda. A União Portuguesa de Futebol, que depois se transformaria em_Federação Portuguesa de Futebol, preparava o jogo de estreia da seleção nacional, frente à Espanha. Estava agendado para dezembro de 1921. A convocatória feita por um comité de selecionadores incluiu três belenenses: Artur José Pereira, naturalmente, Francisco Pereira e Alberto Rio.

Sem se perceber ao certo quem ateara a fogueira da desavença, a imprensa trouxe a público o desagrado de vários setores do futebol nacional em relação à presença de jogadores de «Os Belenenses» na primeira representação nacional. Porquê? Determinada elite considerava indigna a convocatória de gente de classe baixa e de pouca ou nenhuma instrução. Artur rebelou-se: «Não vamos!» Nenhum dos três defrontou os espanhóis. Artur José Pereira, que fora o melhor jogador de todos os tempos, nunca vestiu a camisola de_Portugal. Pagou o preço de nascer pobre e de querer ser grande. Mas o seu sonho foi para além de cem noites de verão.