A vida de Tigran sempre me fez lembrar a de um personagem de Gogol. Talvez a daquele que já nasceu com guarda-chuva e tudo. Ora, quem nasce de guarda-chuva vem preparado para todas as borrascas. Faltavam-lhe as galochas, mas a mãe também não se podia lembrar de todos os pormenores na hora sempre aflitiva do parto. Tigran era um homem que aguentava tempestades à beira de um penhasco, de tronco nu e desafiando os elementos da natureza, Deus incluído. Não foi por acaso que ganhou a alcunha de Homem-de-Ferro. Ou de O Tigre.
Tigran é Petrosian, já agora. Tigran Vartanovich Petrosian, o tipo mais duro de vencer de toda a história do xadrez. Nasceu em Tbilissi, na Geórgia. Foi um rapazinho feliz. Mas a IIGrande Guerra vinha a caminho e faria dele uma sombra vazia de sentimentos.
A personalidade moldou-se-lhe à medida dos movimentos das peças no tabuleiro. Viu morrer a mãe e o pai. Em seguida o irmão Hmayak e a irmã Vartoosh. Depois foi ficando crescentemente surdo. A miséria obrigou-o a ganhar a existência varrendo ruas. «Era um garoto débil. Os mais velhos, às vezes, ajudavam-me. Sentia vergonha. Por isso preferia pegar na vassoura de madrugada, quando não se via ninguém. Foi nessa altura que, por causa de uma doença de pulmões, deixei de ouvir. Mas é tudo muito confuso na minha memória». O Tigre ficou preso na sua surdez. E nas sessenta e quatro casas brancas e pretas.
Cresceu agarrado a um livro velho com as lições práticas do mestre dinamarquês Aron Nimzowitch, um judeu letão que fugiu para a Escandinávia fingindo-se louco e desertando do exército ao tempo da revolução russa. Afirmava que tinha uma mosca voando insistentemente dentro da sua cabeça. Outra personagem que Nikolai Gogol não teria desprezado inventar no caminho das suasAlmas Mortas.
Petrosian fanatizou-se. O seu jogo profundo não se permitia ao luxo dos espaços nem do risco. Cavalos e bispos serviam de apoio aos peões e defendiam galhardamente a retaguarda da rainha. As torres eram elefantes que bramiam por entre a espessura das suas táticas duras, praticamente imbatíveis. «O xadrez é, pela sua forma, um jogo; pela sua estrutura, uma arte; pela dificuldade de uma vitória, uma ciência», filosofava. Falava pouco. Muito pouco e cada vez menos. Perdia pouco, muito pouco. Lev Polugaevsky, um dos seus mais ferozes adversários, não tinha dúvidas: «É mais fácil ganhar um campeonato soviético de que ganhar um jogo a Petrosian».
Dizem que Beethoven, o mais divino de todos os surdos, quando compôs a Nona Sinfonia, nem se dava ao trabalho de usar a casa de banho, fazendo as necessidades ao lado do piano. Petrosian podia ter sido assim. O antigo varredor de ruas de Tbilissi deixou-se obcecar pelos movimentos repetitivos que baralhavam os opositores. A mesma peça era movida em sequências apertadas, avançava pelo caminho da abstração por vezes contrariado com súbitos sacrifícios que o elevavam ao estatuto de jogador supremo, como Mikhail Tal, a maior fera que se sentou em frente de um tabuleiro. Era então que oTigre se revelava na sua dimensão de Tigre. Sem guarda-chuva.
Às vezes usava um aparelhinho que lhe permitia ir ouvindo alguma coisa, aqui e ali. Num torneio disputado em Sevilha, o barulho na sala era de tal ordem que desligou a máquina e dispôs-se, serenamente, em pleno silêncio, a enfrentar um tão desorientado Robert Hübner que este acabou por desistir. A verdade é que o silêncio de Tigran não precisava da ajuda da técnica. A sua concentração era tão profunda que mergulhava numa espécie de transe como se se deixasse cair nas profundezas do oceano onde os homens não gritam e as crianças não choram.
Sim. Ele é uma fera», aceitava Bobby Fisher. «Fareja o perigo com 30 lances de antecedência». Tigran Petrosian era um chato. Tão chato como qualquer criança que tivesse vindo ao mundo já de guarda-chuva. Dono da palavra e do silêncio. Os adversários escutavam as suas frases arrastadas com o respeito que se tem apenas aos grandes mestres, plenos de ensinamentos imperdíveis.
Houve quem lhe chamasse A Pitão: estrangulava os opositores lentamente, com uma força inacreditável, até que eles deixassem de respirar. Chamaram tantas coisas a Tigran Petrosian, esse homem secreto, recolhido, perpétuo movimento interior abafado pela paz externa da sua surdez.
A sua mulher Rona Yakovljevna Avinezer, psicóloga, que chegou a namorar com ele e com um dos seus principais rivais, Efim Geller, ao mesmo tempo, decidiu no inerzonal de Estocolmo, em 1952, que casaria com aquele que ficasse melhor classificado. Tigran, o cínico, somou mais meio ponto do que Geller. Por meio ponto viveu lado a lado com a única pessoa que veio a conhecer a verdadeira dor do Tigre.