A guitarra que chorava gentilmente

Jackie Stewart entendeu sempre a amizade que George Harrison lhe dedicou como um privilégio sem igual na sua vida

George Harrison e Eric Idle eram bons amigos. Aliás, George foi sempre um grande admirador dos Monty Python, a ponto de lhes ter pago a produção de A Vida de Brian. Conta Eric que, certa vez, estavam ambos sozinhos numa praia escondida do Havaí quando apareceu um fulano. Ao ver George soltou um grito: «George Harrison!?. Que diabo faz por aqui?». Ao que, cândido, Harrison respondeu: «Bem, todos temos que estar em algum lado…».

Um lugar onde George estava muito era em tribunal por guiar demasiado depressa. Ficou sem carta meses a fio. Outro lugar onde estava com frequência era nas boxes dos grandes prémios de Fórmula 1. Tornou-se amigo íntimo de Jackie Stewart e levou-o muitas vezes a Friar Park, uma mansão vitoriana de 120 quartos que comprou em Hanley-on-Thames e que encheu de adoradores de Krishna, de uns poucos de pindéricos que viviam à sua conta, e de malta de todas as artes, desde a música ao automobilismo. Jackie, com aquele seu sotaque escocês que tem sempre um rugido alcoólico, queixava-se da forma como George conduzia mas gabava-lhe a maneira como entendia os mecânicos: «Fica ali, atento a tudo, pergunta atrás de pergunta, querendo saber a função de cada peça. Depois, quando o conheci melhor, percebi que também era assim minucioso com a música, procurava encaixar notas como se estivesse a montar um motor».

Harrison agradeceu todos os elogios com uma canção: Faster. Dedicou-a a Stewart e a Nicky Lauda. Não era uma grande canção, mas depois de Something, verdadeiramente só compôs outra balada de topo, Sweet Lord, que por acaso nem era dele e lhe valeu mais umas temporadas no lugar onde estava com mais frequência: o tribunal.

«Chose a life in circuses/Jumped into the deepest end/Pushing himself to all extremes/Made it, people became his friend…». Não é propriamente «something in the way she moves», mas ele também viria, mais tarde, a trocar os passos à melodia que dedicou à primeira mulher, Patty Boyd, depois de ela ter passado para as mãos de Eric Clapton, e com uma justificação brilhante: «Acho que o_Eric nunca me perdoou por eu não ter ficado chateado de ele me ter levado a Patty».

Ao ler uma biografia sobre Harrison que essa espécie de meu irmão mais novo, Jorge Laires, fez questão de me entregar para ler em aviões – À Porta Fechada – fiquei com a ideia que sempre tive dele, do George, não do Jorge, embora sejam ambos predestinados para as cordas: viveu tão amargurado por estar continuamente na sombra de John Lennon e  Paul McCartney que a pergunta que_Roy Orbison lhe fez quando soube do assassinato de Lennon faz todo o sentido – «Não estás contente por não teres sido tu?». Sobreviveu-lhe mais uns anos. É estranho pensar que Harrison quando morreu era um rapazinho para a minha idade (58 anos), mas é mais estranho ainda pensar que Mark David Chapmann deu quatro tiros nas costas de John numa altura em que Lennon estava nos 40. Ainda por cima no mesmo dia em que lhe tinha assinado o último álbum. A propósito disso George também arranjou uma magnífica pilhéria para deixar de dar autógrafos: «Desculpe, mas desde Chapmann não gostou da dedicatória em Double Fantasy, estou muito renitente em fazer dedicatórias».

Perco-me. Falava da Fórmula 1 e da amizade de Harrison com Jackie Stewart. Faster saiu depois da morte de_Ronnie Peterson e tinha uma capa carregada de campeões, desde Stirling Moss a Fangio e de Jim Clark a Graham Hill, com Lauda e Stewart no meio, pois claro: «Faster than a bullet from a gun/He is faster than everyone/Quicker than the blinking of an eye/Like a flash you could miss him going by/No one knows quite how he does it/But it’s true, they say/“He’s the master of going faster». Nada que Lennon e McCartney não fizessem em melhor, mas não vou alimentar essa querela.

Stewart, por seu lado, aceitou a amizade de Harrison, e depois da de Ringo Starr, como uma bênção: «George had a great soul. His instinct was to forgive rather than to condemn and, when people behaved badly, he would make excuses for them. I learnt so much from him». E contou como, uma vez, na Suíça, George começou a tocar numa viola músicas dos Beatles e a explicar-lhe como tinham surgido da cabeça de cada um: «I remember sitting there, thinking this had to be one of the greatest privileges anybody could have».

Faster não ficou para a história da música e, aí injustamente, George Harrison não ficou para a história da Fórmula 1, logo ele que viajava de Montecarlo para o Brasil e para a Austrália atrás daquilo que chamou a vida de circos. A amizade entre ele e Stewart ficou para a história dos homens. Lá no fundo talvez se ouvisse… «while my guitar gently weeps».

afonso.melo@newsplex.pt