O bêbado que inventava o sol

Canhoteiro parecia ter o pé esquerdo ao contrário, como Sucupira. Não pensava em nada. Só ia. E o povo trapejava gargalhadas

Quando Ribamar surgiu na sua frente, Antoninho fixou os olhos na bola, só na bola, com tanta força que poderia ter rebentado as retinas. Estava farto dos esculhambanços de Ribamar e não ia levar mais desaforo para casa. Era o que faltava ser apepinado a torto e a direito. Dessa vez, Ribamar bem podia ir embora, mas a bola ia ficar ali, quieta, caladinha, como uma cadelinha bem comportada, cachorra da bola, diabo carregasse o Ribamar, filho de um saco de putas. Antoninho estava ali parado, mirando a malvada, decidido a matar o desgraçado canalha do Canhoteiro se preciso fosse, rachar-lhe uma canela, no mínimo, virar-lhe os pés ao contrário como o Sucupira, não tivesse o cafuçu já aquele pé esquerdo virado do avesso. Não sabia se tinha mais ódio à bola se a Canhoteiro. O capa-verde que levasse os dois. 

José Ribamar de Oliveira, esse, não pensava em nada. Só ia. E foi. Deu um jeito de cintura para um lado e Antoninho deixou-se cair na armadilha. Instintivamente tirou os olhos da bola e desviou-os para o pé direito de Canhoteiro que, de súbito, rodou para o lado oposto e desapareceu nas suas costas. Antoninho ouviu o trapejar das gargalhadas. Uma sombra perpassou a sua vista que ficou turva. De tanto fixar a bola, perdeu o equilíbrio. Trocou as pernas e tombou na relva. As risadas deram-lhe vontade de morrer ali mesmo, fulminado por um raio misericordioso. Mas, afinal, fulminado já ele tinha sido pelo raio de Canhoteiro.

A infância de José Ribamar de Oliveira em Coroatá, no Maranhão, nos anos-30, foi feita com os pés. Ganhava tostões a fazer embaixadinhas intermináveis com cocos, laranjas, bolinhas de papel, xícaras de café, caixas de fórforos. Renato Pompeu contou a sua vida em O Homem que Driblou a Glória. Zeca Baleiro cantou: «Um pé de ouro/Um peladeiro/Mata no peito e beija o sol/Balão de couro/Bola de efeito/Mas que perfeito é o futebol».

Canhoteiro cresceu e foi para São Paulo jogar no São Paulo e azucrinar a existência de pobres diabos como Antoninho, do Palmeiras. Certa tarde, Antoninho entrou mais decidido do que nunca a quebrar a tíbia do miserável. Mal Ribamar surgiu disparado em sua direcção, jogou-se pelo chão num carrinho. Canhoteiro parou. Tinha aquele jeito de parar de repente como se não viajasse a 300 mil quilómetros por segundo, que é a velocidade da luz. Antoninho deslizou para fora das quatro linhas e, azarado como era, despencou para dentro das escadas do balneário do Pacaembu. Lá no fundo, dorido por fora mas muito mais doído por dentro, chorou ao som das gargalhadas do povão que faziam eco no lajedo.

Canhoteiro passava o seu tempo livre no restaurante Ponto Chic, no Largo do Paysandu, com vista para a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Devorava baurus, uma sanduíche inventada por Casimiro Pinto Neto, repórter radiofónico da Record: pão com rosbife, tomate, picles e queijo derretido. E bebia cerveja. Muita cerveja. Chope atrás de chope.
Ribamar de Oliveira foi o Garrincha do lado esquerdo. Para ele, o drible nunca foi um meio, foi um fim. Gostava de atazanar os defesas adversários e não apenas Antoninho. Se fosse preciso voltava para trás e fintava-os outra vez só para ouvir o público rir com gosto. E ele ria também. Adorava rir. «Corre dispara pára ginga e zás/(Corre dispara pára ginga e jazz)/Mais um zagueiro vai pro chão/Esse já era não levanta mais». 

Idário, do Corinthians, era outra vítima. Idário Sanchez Peiñado, caçula de uma família de espanhóis que se instalou no bairro do Cambuci. Era conhecido por Sangue Azul. Ou por apenasSangre. A torcida berrava: «Pega ele, Idário! Mata ele, Sangre!» Mas nem Peiñado, com toda a sua seiva de heróis das arenas podia alguma coisa contra o touro ladino que era Canhoteiro e o seu futebol de serpentinas.

Quando Ribamar parou na sua frente, preparando a ginga, Homero espreitou pelo canto do olho o ar de galhofa dos espectadores que se iam levantando para celebrar mais um avacalhamento do Canhoteiro. Sentiu borborigmos no estômago. Viu a perna maldita fingir ir para a direita e começar a rodar para a esquerda. Fez pontaria. E não falhou.
O joelho de Ribamar de Oliveira estalou com o som de um ramo seco que quebra. A hilaridade calou-se nas gargantas aflitas. Homero Oppi não era mau tipo. Mas já não havia lugar para arrependimento. «Seu pé direito é a bomba que distrai/O esquerdo é o coração». o pé-coração de Canhoteiro parou aí.

A cachaça foi a maior companheira do resto da vida de José Ribamar de Oliveira. Tornaram-se amantes inseparáveis. Na tarde do dia 13 de Agosto de 1974, almoçou uma feijoada e escorropichou caipirinhas até ficar sonolento. No regresso a casa, amolecido, deixou-se encantar por um banco de jardim à sombra de um jacarandá. À medida que adormecia, uma vaga de sangue derramou-se por dentro da sua cabeça pesada. Estava um céu azul sobre São Paulo. «Só um artista/Um canhoteiro/Acende a tarde/Inventa o sol…»

afonso.melo@newsplex.pt