Onde morrem os valentes

Depois de os sandinistas terem derrubado a ditadura na Nicarágua, um berro ensurdeceu os ouvidos da América Latina: «Somoza ya se fué! Que se vaya Pinochet!». Não foi. Isto é, o grande canalha de Santiago ainda se manteve mais uma década no poder.

Gosto de Santiago. Sobretudo vista do alto do Cerro de San Cristóbal, espreitando a brancura nevada dos Andes onde o condor passa. Às vezes, um frio de montanhas faz tremer a senhora da Inmaculada Concepción e o vento espalha-se por entre as folhas das árvores do jardim da Avenida Américo Vespucio. Já não chove em Santiago como no filme de Helvio Soto, mas ninguém se esquece de Salvador Guillermo Allende Gossens que se suicidou no assalto a La Moneda no dia 11 de setembro de 1973. As pessoas esquecem-se, isso sim, que já houvera 11 de setembro antes de 11 de setembro.

Carlos Caszely conheceu o dr. Allende, médico, três anos antes. Era um jovem apoiante da Unidad Popular, amigo de Gladys de Carmen Marín, que se juntara ao Partido Comunista Chileno, e de Volodia Teitelboim Volosky, autor de El Pan de las Estrellas, jogava no Colo Colo, pelo lado esquerdo, jogou sempre pelo lado esquerdo, viveu sempre no lado esquerdo. O dr. Allende, no seu último discurso, transmitido na Radio Magallanes, falou de si próprio no passado. Sabia que ia morrer. Mas falou do Chile no futuro: «Abrir-se-ão as avenidas por onde irão passar os homens livres!». Sabia que o Chile iria sobreviver.

Muitos quiseram fazer do Colo Colo o clube do fascismo. Mas nenhum clube fascista teria como símbolo a face de um mapuche, os homens que falam mapudungun, o som da terra. Nenhum clube fascista teria jogado em Moscovo. Nenhum clube fascista teria acarinhado o espírito revolucionário de Carlos Humberto Caszely Garrido, neto de emigrantes húngaros, conhecido por El Rey del Metro Cuadrado.

«Ese partido yo lo bauticé como el Teatro del Absurdo. Fue algo que no se hace ni en el barrio, cuando se juega con los amigos»: a frase é de Caszely. Fala de um jogo entre o Chile e a União Soviética. Um jogo que simplesmente não existiu. Mas que fez sorrir o canalha de Santiago.

O Estádio Nacional tornou-se um centro clandestino de tortura depois da morte de Allende. Ninguém diria que, por debaixo das bancadas vazias, os cárceres recebiam os opositores ao regime de Pinochet. O futebol não era sequer a coisa mais importante das coisas menos importantes. Importante era a repressão. Cá em cima, sobre a relva, não se ouviam os gritos dos supliciados. O vento que se espalhava por entre as folhas do jardim da Avenida Américo Vespucio lambia os degraus de cimento de El Pasional, em Ñuñoa, e calava as vozes de mais de 40 mil prisioneiros, muitos deles conduzidos, depois dos interrogatórios levados a cabo em seis camarotes preparados para o efeito, para o Campo de Chacabuco, no norte, em Antofagasta, onde foram assassinados. Uma pilhéria antiga ainda se usa no Chile: os clubes pequenos que não atraem público aos estádios são conhecidos por Los Pinochets.

Hernán Rivera Letelier viveu em Antofagasta. Tem um livro chamado Donde Mueren Los Valientes. Carlos Caszely é um dos valentes. Mas não morreu. Estava no Estádio Nacional no dia 26 de novembro de 1973, foi obrigado a participar na grande farsa do canalha de Santiago. O Chile jogara em Moscovo o primeiro jogo de uma eliminatória supranumerária frente à URSS para discutir a última vaga no Mundial de 1974, que teria lugar na Alemanha Ocidental, e empatara 0-0. Os russos exigiram não jogar a segunda mão em Ñuñoa. Augusto José Ramón Pinochet Ugarte riu-se. O pulha. Stanley Rous, o presidente da FIFA, recebeu um telegrama: «Nenhum desportista soviético poderia pisar um terreno manchado pelo sangue de patriotas chilenos». Mil dólares de multa. Derrota declarada oficialmente.

O Chile entrou em campo sem adversário. Onze jogadores, um árbitro, e mais ninguém. Um apito no silêncio. A passo, os chilenos foram trocando a bola até à baliza vazia. Caszely recusou-se a chutar: «Na véspera houve familiares de desaparecidos que me suplicaram que procurasse, no estádio, por vestígios dos seus parentes. Uma tristeza profunda!». Francisco Valdés, El Chamaco, filho de operários, militante de esquerda, companheiro de Carlos no_Colo Colo, libertou-o do gesto infame. Rematou para as redes que esperavam a bola. Submissas: as redes e a bola.

O canalha de Santiago estava feliz. A imprensa, sobretudo El Mercurio, jornal de todas as falsidades, exultou com o triunfo sobre o inimigo soviético. Em La Moneda, palácio reconstruído e com o nome de Edifício Diego Portales, recebeu os heróis do triunfo vazio, mesquinho. Enfileirou-os na sua frente e foi-os presenteando, um a um, com o afago vil do seu espúrio apreço. Carlos Caszely, o valente, recusou-se a apertar-lhe a mão.

afonso.melo@newsplex.pt