A dança do Nijinski negro…

Marques Oreole Haynes fazia coisas que ninguém conseguia imitar. Estendia a mão e tocava na cauda dos cometas.

Em Sand Springs, um subúrbio de Tulsa, no Oklahoma, nos meados dos anos 30, a miudagem não tinha muito com que se entreter. O que não deixava de ser contraditório com o projeto inicial de Charles Page, um homem de negócios de sucesso, que criou, em 1911, a Sand Springs Home, um abrigo para órfãos e viúvas, que acabaria por ser a génese da cidadezinha que se ergueu em seu redor.

Os Haynes eram uma família remediada. O pai trabalhava nos caminhos-de-ferro, não havia dinheiro para luxos como eletricidade ou água canalizada. Hattie, a mãe, fazia biscates em casa e espreitava pela janela os quatro filhos que se entretinham com uma bola de borracha no baldio empoeirado das traseiras. Marques Oreole Haynes era o mais novo. Nascera em março de 1926, tinha umas mãos mágicas e um corpo que parecia desconjuntar-se a cada movimento. Muito mais tarde, já era um nome sonante dos Harlem Globetrotters, Ben Green, um dos grandes jornalistas norte-americanos, escreveu sobre ele: «Era etéreo. Driblava por detrás das costas, por entre as pernas. Conseguia bater a bola com ela a cinco centímetros do chão. Certa vez vi-o fazer um movimento tão súbito perante dois adversários que o cercavam que os infelizes acabaram por chocar violentamente um contra o outro».

Só alguém com a arte de Haynes poderia jogar nos Globetrotters e Haynes foi uma das maiores almas do clube que, a despeito de levar o nome de Harlem, nasceu em Chicago. Tal como Sand Springs contrariou a filosofia do seu criador, tornando-se um lugar horrendo para se crescer, órfão ou não, os Globetrotters desafiam a ideologia dos Estados Unidos, mesmo que usem um equipamento copiado da bandeira da confederação: vencer não é assim tão importante. Aliás, importante era dançar com uma bola de basquete. Tal como um grupo de antigos estudantes da Wendell Phillips High School começou a fazer no salão de baile do Hotel Savoy a partir de 1926 sob o nome bastante prosaico de Savoy Big Five. Não tardaram a juntar ao bailado o teatro e a comédia. Até que um tipo vivaço, Abraham Saperstein, se tornou o treinador e promotor da rapaziada. Inventou-lhes um nome que fizesse justiça ao facto de serem todos retintos, Harlem Globetrotters, e levou-os em digressão pelo país. Ficou rico.

Quando era garoto vi os Globetrotters em Lisboa espinafrarem por completo uma espécie de seleção de jogadores portugueses reunidos propositadamente para serem pacientemente esculhambados pelas brincadeiras adversárias. Muitos anos depois levei o meu filho Afonso, ainda pequenino, a vê-los no pavilhão Atlântico. Assistir a uma exibição dos Globetrotters é, para mim, que nem gosto de basquete, uma lição que se deve estudar nem que seja uma vez na vida. Mesmo que se esqueça em seguida, algo que não é fácil. Nunca poderia ser fácil esquecer cinco Nijinskis negros. 
Abe Saperstein tinha tanto de esperto como de unhas de fome. Não admira: era judeu. Teve dificuldade em lidar com a crescente popularidade de Marques Haynes e este acabaria por lhe virar as costas em 1953 e fundar os Harlem Magiciens. Porque Haynes era daqueles homens que estendia a mão e tocava na cauda dos cometas. Green outra vez, agora no original: «No one had ever seen anything like this before on a basketball court. And, in truth, there had never been anything like this on any basketball court. Not on any court, anywhere, since Dr. Naismith invented the game. What Marques Haynes was doing with a ball had never been done». Pois: nunca ninguém como Marques Haynes. As pessoas atiravam-lhe chapéus, moedas, até as camisas. Quando saía da quadra, o chão ficava pejado de objectos.

Antes de se tornarem numa equipa para a qual vencer é apenas a menos importante das coisas mais importantes, os Globetrotters venceram e de que maneira. O World Professional Basketball Tournament, em 1940, por exemplo, considerada como a mais dura competição mundial para profissionais. E espancaram com requintes artisticamente sádicos os Minneapolis Lakers que se ufanavam de ser a mais poderosa equipa dos Estados Unidos. Depois demandaram o mundo. Havia quem os conhecesse de cor: Louis Pressly, William ‘Rookie’ Brown, Boyd Buie, Reece ‘Goose’ Tatum, Frank Washington, Marques ‘Markus’ Haynes, Sammy Quee, Clarence Wilson. Negros esplendorosos!
Aos 60 anos, ainda Marques Oreole Haynes viajava por toda a parte, ora conduzindo o seu próprio automóvel, ora apanhando comboios e autocarros, dormindo em motéis de beira de estrada, apresentando-se em espetáculos circenses de ‘one man show’, fazendo com as suas mãos mágicas, uma bola e um cesto coisas que mais ninguém conseguiu fazer alguma vez. Tornara-se nómada: «You get lonely on the road, sure. It gets boring. It gets tiring. Sometimes you wonder why you’re out here, out on the road, but then you remember you’ve been here all your life and how you enjoyed it so». Navegava na solidão recusando um cais.

afonso.melo@newsplex.pt