Chovia em Buenos Aires. Água escorria pelas vidraças dos edifícios da Sánchez de Bustamante, água escorria-me pelas vidraças da memória e parecia-me ouvir ao longe a voz lavada a whiskys de Amelita Baltar: «Y cruza lluvias de hace mucho tiempo/la que al final mojó tu cara triste/la que alegró el primer abrazo nuestro/la que llovió sin conocernos, antes». Foi então que me falaram da digna tristeza de San Juan e eu nunca tinha ido a San Juan, mais de mil quilómetros para oeste, para lá da Sierra Chica de Zonda e do Valle del Tulúm, onde as montanhas são muito mais antigas do que os Andes e o condor também passa. Chovia em Buenos Aires e as pessoas corriam de um lado para o outro de Recoleta e Barrio Norte com seus paraguas e um som distante de milonga de Piazzolla: «Vamos!/que está lloviendo para arriba, llueve/y con los dos nuestro paraguas sube».
San Juan tem uma história de futebol digna de um conto de Roberto Arlt, filho de um prussiano de Posen, que agora se chama Poznan e fica na Polónia, jornalista de El Mundo onde escrevia uma coluna com o título de Aguafuertes, homem da suprema ironia dos humildes. E há lá nome mais humilde do que Sportivo Desamparados, El Orgullo de San Juan, que tem um lema que vai assim: «Dejen la vida y, si no se puede, bien igual». Não há. Ou se há, que venha uma chuva como a que caia em Buenos Aires e leve estas letras pela rua fora até ao seu destino de sarjeta.
Quando os alunos da Quinta Agronomica y de Fruticultura de San Juan resolveram juntar-se para fundar um clube, em 1919, talvez tenham sido mais irónicos do que humildes. Reuniam-se na Bodega Puyuta, na Plaza de la Virgen de los Desamparados, na esquina que dava para calle Nicolás Medina, e escolheram ficar conhecidos por Desamparados. Mais tarde, um deles, deixou de parte a humildade e a ironia e limitou-se à poesia: «Esa virgen es la de los pobres. Y por entonces, los que fundaron el club desparramaban pobreza por todos lados». Acrescentar Sportivo teve, por seu lado, o seu quê de prosaico. Vestiam camisolas às riscas horizontais verdes e brancas, ganharam a alcunha de Los Víboras, o seu campo era o Serpentário. Depois a terra tremeu na noite de 15 de Janeiro de 1944. Os Desamparados ficaram igualmente descamisados. No lugar onde tinham o seu estádio ergueram-se barracas para recolher as vítimas do terramoto – o Barrio de Emergencia Ameghino – que teve o seu epicentro na vizinha La Laja, atingiu 7.4 na escala de Richter e arrasou 80% da cidade. Parecia que tinha chegado ao fim o tempo dos dias claros…
As famílias fizeram sempre parte da história do clube triste. Irmãos na humildade mas também muitos deles de sangue. Por três vezes, três irmãos foram o centro das emoções dos hinchas. Primeiro vieram os Nehín, nas décadas de 30 e de 40, José, Pero Pablo e Nahún. Heróis tão épicos como Nenún Nehín,que obrigava os companheiros a cantar nos balneários após as derrotas para que nunca, mas nunca, deixassem abater pelo infortúnio. Ou como José Eduardo Nehí, capitão da seleção argentina que participou no Mundial de 1934, em Itália. Ou ainda como Pero, El Pito, que foi contratado pelo Estudiantes de la Plata.
Depois vieram os Roldán: Pablo, Orlando e Júlio, nos anos 60. Um trio de gente finíssima, de uma educação tão esmerada que lhes valeu um prémio especial pela sua forma impecável de encararem o jogo: a Copa de la Caballerosidad. Em seguida, La Dinastia, isto é, os Vega: Ismael, El Durísimo, defesa sem contemplações que batia em tudo o que ficasse para baixo das amígdalas; Vicente, El Incansable, médio que corria quilómetros e chegava ao fim dos jogos sem vestígios de ter suado a camiseta; Ángel, El Zurdo, avançado ao qual a bola obedecia com desvelos de amante apaixonada.
Faz parte do destino dos humildes que os momentos mais importantes da sua vida sejam de profunda tristeza. Os Desamparados erguem como um facho a arder na noite escura aquele momento de Outubro de 1969 em que foram ao Monumental de Nuñez enfrentar o River Plate para o campeonato argentino. Os manos Vega subiram ao relvado. Juntamente com outros dos seus irmãos desamparados. O guarda-redes Armando Roque Palacios sofreu sete golos. Todos na primeira parte. No segundo tempo, os homens de San Juan revoltaram-se e lutaram até ao esgotamento na defesa da sua baliza e do seu companheiro ferido. O resultado ficou assim. No balneário, mal o jogo acabou, Los Viboras cantaram a uma só voz, espantando espíritos malignos. Nas árvores de San Juan surgiu, escrita a verde, esta frase: «El las mala, mucho más!». No peito de um desamparado bate o maior dos corações.
afonso.melo@newsplex.pt