O ministro que poderia ter sido herói, mas acabou acusado

Azeredo Lopes negou ter havido encontros informais com o diretor da PJ Militar para receber dados relativos à investigação paralela. Sobre não conseguir precisar alguns detalhes, lembrou o juiz que um ministro da Defesa Nacional não é um cidadão comum, uma vez que «é conduzido». E contou como poderia ter ficado para a história como…

Azeredo Lopes garantiu ao juiz Carlos Alexandre que nunca houve encontros com o antigo diretor-geral da PJ Militar em sua casa, na Alta de Lisboa, nem mesmo com o seu ex-chefe de gabinete Martins Pereira. Interrogado na segunda-feira como arguido na instrução do caso Tancos, o ex-ministro da Defesa Nacional invocou a língua portuguesa em sua defesa, lembrou um momento marcante na visita do Presidente da República – cuja personalidade preferiu não comentar – aos paióis e defendeu que um ministro apenas se deixa conduzir. O SOL revela as respostas do ex-governante que chega mesmo a dizer que se tivesse morrido nos incêndios de 2017 não teria sido acusado e teria tido um fim heroico. Também diz que não determinou o envio para António Costa da documentação que lhe foi entregue em agosto.

Um ministro não é um cidadão comum: ‘Deixa-se conduzir’
Para os investigadores foram vários os encontros entre o diretor Geral da Polícia Judiciária Militar (PJM), Luís Vieira, que coordenava a investigação paralela que culminou com o achamento das armas, e o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, tendo a maioria acontecido na casa deste último. Mas a versão de Azeredo Lopes contraria a acusação: «Em minha casa seguramente que não. [Os encontros] foram situações protocolares.Encontrei-me com ele um dia quando estava acompanhado pelo senhor tenente general Martins Pereira, na altura meu chefe de gabinete, junto a minha casa».

E sobre as alegadas chamadas feitas por Martins Pereira para Luís Vieira da casa do ex-governante a resposta também foi perentória: «Dificilmente terá feito, porque também não esteve em minha casa».

A acusação dá conta de que Azeredo Lopes foi sendo informado nos diversos encontros do andamento dos trabalhos da investigação paralela da PJ Militar, paralela à do MPe da Judiciária civil. Sobre o facto de o telemóvel de Martins Pereira ter telefonado para Luís Vieira no dia 30 de junho de 2017 ficando a chamada registada numa antena que cobre a área de residência do ex-ministro, Azeredo só vê uma hipótese: «Vim do Porto para dar entrevista à SIC e admito que o senhor tenente coronel Martins Pereira tenha telefonado para saber se havia novidades que fossem importantes para o ministro da Defesa transmitir na entrevista».

E porquê usar o telefone no local onde mora? É que Martins pereira foi buscar Azeredo Lopes ao aeroporto. Ainda assim, o ex-ministro salienta que não subiu até ao seu apartamento: «É difícil imaginar a hipótese que tenhamos ido para minha casa não sei fazer o quê. Para me mudar? Foi a hipótese que congeminei […] Tenho dificuldade em imaginar porque o general Martins Pereira me acompanharia». Na fase de inquérito o ex-ministro havia afirmado que foi direto do aeroporto para os estúdios da SIC.

E Azeredo não consegue precisar também quanto tempo demorou desde o aeroporto até à estação por não saber a que horas desembarcou: «Um ministro da Defesa Nacional deixa-se conduzir. Tem andandos. Eu não digo isto por ironia. Acaba por perder a necessidade de noção do tempo. […] O cidadão comum não se pode permitir enganar na hora do avião. O responsável político tem a vida toda organizada por outrem».

Disse a Vieira que ‘o que não tem remédio remediado está’
Azeredo Lopes assumiu, porém, o encontro que teve com o seu ex-chefe de gabinete e o então diretor da PJM a 3 de julho, dia em que este último recebera uma ligação da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, na qual lhe anunciara a intenção de afastar a PJM da investigação.

Azeredo contou ao juiz Carlos Alexandre que nesse dia já tinha saído do Ministério quando recebeu uma chamada do seu chefe de gabinete a dizer que Vieira queria falar – «É preciso ver que tinha sido agendada a visita do Presidente da República a Tancos» – e «a título excecional» acedeu: «Disse para que quando chegassem darem um toque e desci para uma conversa de 10 ou 15 minutos».

Segundo Azeredo, Luís Vieira transmitiu-lhe discordância com o que «achava ser uma má decisão da senhora PGR». Azeredo contou esta semana que prometeu ao ex-diretor da PJM que iria falar com um colega para pedir uma opinião, algo que diz nunca ter feito por considerar que o resultado seria inútil. O arguido afirmou ainda ao juiz Carlos Alexandre que terá mesmo dito ao chefe máximo da PJM que não havia nada a fazer: «Como diz o povo, aquilo que não tem remédio remediado está. Foi, aliás, isso que transmiti ao senhor coronel». Terá dito também para expor a situação a Marcelo que estaria no dia 4 de julho em Tancos.

Frisando que Luís Vieira nunca lhe transmitira ter a intenção de agir ilegitimamente (entenda-se iniciando uma investigação paralela), Azeredo Lopes afirmou que o tema das discordâncias com a PGR nunca mais foi abordado.

Um juiz que percebe mais de Defesa do que um ex-ministro
É quando chegam as perguntas sobre a visita de Marcelo a Tancos que surge um dos momentos mais cómicos, com o ex-ministro a dizer que quem mais entende de Defesa Nacional na sala é o juiz Carlos Alexandre e não ele. «Não sei se o senhor doutor conhece Tancos», perguntou Azeredo a Carlos Alexandre, que lhe explicou toda a sua experiência militar. «Isso significa que tem mais experiência militar do que eu», rematou, com o juiz a responder: «Nem para lá caminho».

Depois desse incidente, Azeredo continuou a descrever como foi aquele dia, os constrangimentos, a forma como as dezenas de pessoas estiveram, expostas ao olhar dos jornalistas e numa sala sem isolamento sonoro, algo que o incomodara, por ser «formal». Sobre o facto de a Judiciária civil ser das poucas entidades a não ser convidada, Azeredo disse que quem definiu a comitiva foi a Presidência da República, afirmando mesmo que não foi ele a convidar o chefe de Estado: «Nem Tancos era a minha casa, nem eu convidaria um presidente da República nestas circunstâncias». Nesse seguimento, o ex-governante continuou a descrever o dia intenso: «Como se lembra fomos até ver as vedações, depois voltámos…»

«Isso tem a ver com a personalidade do comandante supremo», respondeu Carlos Alexandre, que rapidamente foi interrompido por Azeredo Lopes, que tenta salientar que não estava a querer fazer um juízo de valor sobre a personalidade de Marcelo mas apenas a descrever a intensidade da visita. Um dos momentos que mais o marcaram, disse em tribunal, foi quando Luís Vieira perante a comitiva disse que a PJ já tinha recebido um aviso da possibilidade do furto e que não comunicara à congénere militar.

Azeredo Lopes invocou em sua defesa… a língua portuguesa 
Se há frase que ficará para a história de Tancos é: «No limite, pode não ter havido furto nenhum». Foi proferida por Azeredo Lopes a 10 de setembro de 2017 numa entrevista à TSF. Questionado na última segunda-feira pelo seu advogado, Germano Marques da Silva, sobre esta declaração, o ex-ministro começou por lembrar que a sua mãe era professora de português e que sempre lhe ensinou que «quando se fala em português, o sentido das palavras é aquele que a língua portuguesa determina». «Nem que fosse num sentido literal eu não estava a dizer que não tinha havido furto», disse, acrescentando: «Invoco em minha defesa o Português!»

Mas Azeredo vai mais longe e diz que também não disse o que lhe tem sido atribuído, falando mesmo em declarações truncadas. Ainda assim, lembra que mesmo dentro dos militares havia quem afirmasse que nada havia desaparecido, citando mesmo um artigo de opinião do coronel Vasco Lourenço no jornal i.

Aproveitando para falar sobre a falta de controlo e discrepância entre o que estava registado e o material que realmente estava nos paióis, o ex-ministro disse ter ficado incrédulo.   

Relatório entregue em agosto não foi enviado para Costa
No início de agosto, o diretor-geral da PJM foi ao Ministério da Defesa ter com Azeredo Lopes. Segundo o MP, Azeredo foi posto a par de tudo o que se passava, nomeadamente de que a investigação paralela estava já a chegar ao assaltante: «[Luís Vieira] disse-lhe que iria efetuar diligências para recuperar o material militar ao arrepio da PJ e do Ministério Público; deu conhecimento a Azeredo Lopes de que tinha tido informação, por militares do Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé, da existência de um indivíduo que tinha subtraído e escondido o material militar dos Paióis Nacionais de Tancos». E, ainda segundo a acusação, entregou três documentos ao então ministro.
No entanto, Azeredo disse agora ao juiz que essa não foi uma reunião que o tenha marcado e que só aceitava confirmar, porque consta da sua agenda o registo.

O antigo membro do Executivo de António Costa afirma mesmo que na documentação entregue ainda hoje não consegue «detetar um qualquer pré-anúncio ou predisposição para um comportamento que possa considerar-se reprovável ou ao arrepio daquilo que tinha sido determinado». 

E é neste ponto que diz mesmo que não terá determinado que a documentação fosse enviada para António Costa: «Posso é ter dito [na reunião]: depois vejo se há relevância em dar conhecimento ao primeiro-ministro».

Não determinou o envio para Costa, diz, nem que fosse registada a sua entrada no Ministério da Defesa: «A ideia de um ministro dizer ‘registe’ ou ‘não registe’, ‘guarde’ ou ‘não guarde’, desculpe, não corresponde ao que é o funcionamento de um gabinete normal. Eu não faço ideia sequer qual é o sistema de registo de documentos».

Só soube do achamento no dia e ia ficando nas chamas
Azeredo Lopes garante que só na manhã do dia em que as armas foram encontradas é que soube da descoberta, não tendo estranhado que a notícia lhe tivesse chegado através da PJM, uma vez que para si, diz, «PJM era PJ e MP». Justificou ainda a colaboração do seu gabinete de imprensa com a PJM para a divulgação da notícia com o facto de em momentos anteriores ter sido feita uma má comunicação – e deu como exemplo a morte dos instruendos no curso de comandos. Afirmou mesmo que chegou a dar conta a altos responsáveis que em «pleno século XXI» não se podia «comunicar como em plena guerra colonial».

Outro dos temas abordados foi a entrega do memorando a 20 de outubro – véspera de um Conselho de Ministros em que Tancos e os incêndios iam ser temas incontornáveis – ao seu então chefe de gabinete. Azeredo diz que Martins Pereira lhe ligou a dizer que Vieira e outros elementos da PJM foram ao ministério entregar «documentos para destruir». 

Destruir porquê? questionou Azeredo Lopes, que ouviu uma resposta enigmática: «Porque tem o Modus Operandi». Confessando ao juiz que por vezes Martins Pereira tinha «o condão» de o «irritar ao telefone», o ex-ministro conta que insistiu: «Modus Operandi?». É nesse momento, garante, que tomou conhecimento do essencial do documento, inclusivamente que havia um informador, que se chamava Fechaduras e da ligação deste ao Algarve. «Algarve?», terá perguntado na altura ao seu interlocutor, confessando agora ao juiz que ficou baralhado porque nem «sabia onde era a Chamusca», local onde as armas apareceram.

«Sou do Porto com muito orgulho e a minha presciência geográfica…», disse a Carlos Alexandre. Na conversa, Martins Pereira explicara que Fechaduras era informador da PJ e da PJM, mas que estava com medo da PJ.

Sobre a relevância desta descoberta numa altura em que o Governo estava debaixo de fogo com os incêndios, Azeredo aproveitou um desabafo de Carlos Alexandre sobre a destruição em Mação, sua terra natal, para constatar que houve uma «crise política gravíssima que pôs em causa não só um membro, mas todo o Governo» e para mostrar que ele próprio sentiu na pele os efeitos: «Eu só posso dar o testemunho de um pobre ministro da Defesa Nacional que veio de carro a 15 de outubro [de 2017] para Lisboa e ia ficando no caminho em Aveiro. […] Pelo menos não teria sido acusado. Teria morrido como um herói».

Ao longo das sete horas de interrogatório assumiu ainda que há documentos que não foram registados neste e em muitos outros casos, referindo que a ausência de registos não faz com que uma reunião passe a ser informal.