José Tolentino Mendonça: ‘Acho que Deus nos vai perdoar tudo’

É padre e poeta. Aos 47 anos, já editou quase 20 livros, entre poesia, ensaio e teatro. Nascido na Madeira, com um ano foi para Angola, onde passou o início da infância. Filho de pescador, a natureza moldou-lhe o olhar, a par da Bíblia e da poesia. Director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,…

o seu primeiro poema junta a bíblia e helberto helder. é uma relação improvável?

as melhores relações são as improváveis, que existem sempre dentro de mim. a bíblia é uma espécie de pátria. mas a ela junto aquilo a que borges chamava os novos textos sagrados, que são escritos hoje e transportam a ressonância mais íntima e transparente, a onda mais alta. são o ressoar dos nossos passos.

quais são para si esses textos?

gosto de tertuliano a blanchot, de santo agostinho a michel foucault ou a michel de certeau, da bíblia a herberto helder, a simone weil, a ruy belo. de gonçalo m. tavares e ana teresa pereira a pavese, natalia ginzburg. a literatura e a escrita do mundo são uma espécie de alforges, andam sempre comigo.

nas ditas relações improváveis.

acredito que o que é pedido a cada um de nós é que sejamos originais. acho que deus nos vai perdoar tudo, as asneiras que fizemos, as incertezas, uma cretinice ou outra. acho que deus nos vai perdoar tudo. só não nos vai perdoar não termos sido nos próprios. é tão importante. o cristianismo precisa de pessoas originais, que vivam a sua vida, a sua singularidade. o meu sonho é que o mundo se encha de mulheres e de homens improváveis. essa é a minha utopia.

não é uma espécie de carta-branca?

gosto muito de um dos lemas de santo agostinho: ‘ama e faz o que quiseres’. a liberdade é sempre o habitat da nossa própria identidade. só livres nós somos.

o amor pode-nos sempre salvar?

tudo o que fazemos é marcado pela fragilidade da nossa condição. somos esta coisa humana, provisória, incerta, inacabada, imperfeita. mas somos também poeira enamorada. há em nós alguma coisa de maior. mesmo no erro. beckett dizia: errar, errar mais, errar melhor. no erro podemos encontrar um caminho.

falou dos seus novos textos sagrados que são, ao mesmo tempo, profanos. como é essa co-habitação?

gosto dessa co-habitação, tudo o que é hoje sagrado já foi profano um dia, porque foi humano. a bíblia não começou por ser um livro religioso, começou por ser um livro humano. às vezes choca-me como se diz a palavra religião, remetendo-a para uma banda estreita, para um espaço privado, sem lhe dar direitos de cidadania. falar de religião é falar de humanidade. não me choca nada a aproximação entre o sagrado e o profano. pelo contrário. acho revitalizante.

no seu primeiro poema, a infância de herberto helder, refere a bíblia e um escritor maior. como olha hoje o jovem que tocou em duas coisas ‘sagradas’?

a poesia tem sempre a representação mas tem uma literalidade ardente. é assim que vivo. ao pé da bíblia está o rilke, hölderlin, armando silva carvalho, a adília lopes. talvez não tivesse consciência. sophia de mello breyner dizia que o poema sabe mais que o poeta.

se tudo já foi profano pode-se tocar.

claro. para mim a bíblia é também um livro de estudo, de trabalho. há um contacto com a bíblia que não deixa de ser o de um crente mas leio a bíblia rodeado de dicionários, concordâncias, textos clássicos. é um círculo profano à minha volta. é a melhor homenagem.

defende que a bíblia deve ser ensinada na escola. porquê?

não entendemos a cultura portuguesa, não nos tornamos herdeiros dos nossos grandes museus, não percebemos o mundo literário sem essa chave. se na universidade se ensina a odisseia e os lusíadas, por que não se ensina a bíblia a quem não lhe tem outro acesso?

ou a quem tem preconceito?

a quem ergue uma barreira e não a entende como uma grande biblioteca literária, uma biblioteca universal. a bíblia é uma espécie de grande teatro do mundo, um grande armário de personagens, uma mina de temas, um laboratório verbal verdadeiramente único. a humanidade toda está ali.

a infância que aparece nesse livro não é a do herberto helder, é a sua. como a recorda?

vivia no machico, num mundo ainda rural, muito próximo do mar, com grandes espaços em que dava para me deitar na terra e olhar as estrelas. tinha um caderno em que apontava os barcos que passavam, observava as árvores. o meu pai, que era pescador, quando ia às ilhas selvagens trazia-me de presente uma cagarra. é um mundo próximo da natureza, tutelado pelas profissões artesanais, atravessado pela poesia, pelos elementos.

e os anos em angola?

o tempo em angola foi anterior à ilha. era mais novo, embora tenha memórias familiares e da imensidão do espaço.

são opostos, o espaço fechado da ilha e a vastidão de áfrica.

ao olhos de uma criança não são tão opostos. não me lembro de pensar a ilha como um lugar circunscrito. a ilha é um mundo para os que lá vivem. e antes destas auto-estradas e vias rápidas só uma vez por ano se fazia uma viagem à sua volta. a ilha tem uma natureza tão poderosa que é um mundo.

que histórias lhe contava a sua avó?

uma adaptação do cancioneiro, que mistura a bela infanta com o d. sebastião e o seu exército. a minha avó acreditava, como uma visionária, na ilha de arguim, e que ela própria tinha visto a espada do d. sebastião numas escarpas de uma encosta da madeira. é uma geração que está a desaparecer e que representa um determinado imaginário insular, em que a ilha era a esquina do mundo. a verbalização mágica do mundo acabava por tornar o lugar e a vida muito maiores.

quando entrou para o seminário?

tinha onze anos. a questão vocacional colocou-se muito cedo. era uma questão relevante para mim desde miúdo.

como descobriu a fé?

a minha família era crente. e algumas pessoas acabaram por ser muito importantes. aos 15 anos, altura em que colocava perguntas e tinha uma busca intelectual que se esboçava, o joão henrique silva, que agora é o director da cultura na madeira, era professor no seminário. era um homem que gostava muito de cinema. mostrou-me que era possível viver a fé e escolher uma vocação religiosa em relação com o mundo da cultura.

nos seus poemas refere artistas como patti smith, leonard cohen. como se estabelece essa relação

hoje li uma frase de samuel beckett a dizer que todos os grandes poemas são orações. e isso é verdade também para patti smith e leonard cohen.

que podem ser considerados hereges.

até os salmos bíblicos se discutiu se não seriam heresias. o salmo 23 diz: «o senhor é meu pastor, nada me falta. leva-me a descansar em verdes prados […] ainda que eu desça por vales tenebrosos, nenhum mal temerei porque tu estás comigo». os rabinos discutiam se isto não seria uma heresia e se o salmo não deveria ser retirado. deus, o todo-poderoso, está nos vales tenebrosos, no inferno, no lugar da penúria?

não se diz que deus está em todo o lado?

ah, lá está. então também estará nesses lugares íngremes de que fala a voz de leonard cohen.

a peça o estado do bosque insere-se no ciclo em nome de deus, onde há também textos de pasolini. mais uma relação improvável.

pasolini parece um autor apenas profano mas a sua profanidade tem uma estatura e uma exigência ética que se aproxima do sagrado. isso é claro no seu evangelho segundo mateus. quando pasolini o estava a fazer filmou primeiro a cena do baptismo, à maneira de uma pintura sacra. e depois esteve quase três meses sem filmar. não encontrava o tom. até que adoptou o tom profano. como se estivesse a fazer um noticiário, retirando a aura sagrada. a nudez, o olhar despido de artifícios e montagem, olhar jesus como um homem do presente, acabou por ter uma força muito maior. e filma os marginais como se fossem santos. filma a história profana como se fosse sagrada e a história sagrada como se fosse profana. aprendo alguma coisa com isso.

o quê?

talvez a importância do humano. precisamos de uma nova gramática para dizer a vida. uma gramática que não viva a separar coisas, razão e fé, compaixão e gestão, dinheiro, criatividade e arte.

não caminhamos na direcção oposta?

não sei. é necessário dizer que precisamos de um novo contrato social a este nível. que seja também uma nova gramática antropológica. não podemos desistir de sonhar o mundo futuro. pelo contrário. este é o momento para viver com realismo mas sem baixar as reivindicações profundas do nosso coração. há um desânimo muito grande mas sinto que é preciso reagir.

mas compaixão e gestão parecem não existir na mesma frase. não é essa a mensagem transmitida?

essa é a mensagem. mas a pergunta é: é isso que queremos? é isso que dá ao ser humano a sua dignidade, a possibilidade de uma vida autêntica? são questões que nos temos que colocar. gosto da etty hillsum, uma rapariga judia que se ofereceu como voluntária para um campo de concentração, onde cuidava de dois gerânios. o poeta brasileiro manoel de barros diz que mesmo as latas vazias podem servir para milagrar flores. precisamos de valorizar de novo o inútil.

como?

este tempo é também de grande vigilância, de grande participação. não é um tempo de desmobilização. é um tempo para as pessoas se sentarem a conversar. é um tempo para se encherem os teatros, para se encherem as assembleias. para aprofundarmos o nosso destino comum.

não toma posições políticas. porquê?

todas as nossas escolhas têm uma dimensão política. nesse sentido as minhas decisões são também políticas. se são partidárias? não. e isso por uma vontade explícita, que tem a ver com a escolha da minha condição de vida. como padre escolhi viver de uma forma que me coloque disponível para acolher a todos e dialogar com todos.

há homens do clero que estão a exprimir um sentimento de revolta por os mais pobres não estarem a ser protegidos.

mas isso é outra coisa. o discurso que a igreja faz é um discurso em defesa da pessoa humana, em favor dos mais pobres, a lembrar esses valores. é um discurso que tem a ver com a sua missão, não é um discurso partidário. é o discurso da igreja, que se tem que se colocar ao lado da pessoa humana.

como vê este nosso tempo?

com enorme esperança. este tempo em que parece que o nosso coração se torna mais pequenino é um tempo para voltar a olhar os lírios do campo.

rita.freire@sol.pt