Obituário. Mário Veríssimo

1938-2020  O abraço que ficou por dar

De repente, e de forma absolutamente injusta, Mário Veríssimo deixou de ter nome. Agora, na hora da sua morte. Abriu telejornais e trataram-no como o amigo de Jesus, primeira vítima fatal do covid-19 em Portugal. Aos 80 merecia bem mais do que isso, tão dedicada foi a sua carreira, tantos foram os seus amigos para além do treinador do Flamengo.

Recordo-me dele no tempo em que trabalhava com João Alves, Manuel Fernandes ou Fernando Santos, nas minhas idas profissionais à Amadora, para saber para A Bola as novidades do clube, como então se dizia. Geralmente na companhia de João Manarte, o fotógrafo que conhecia toda a gente da zona. Certa vez corremos seca e Meca em busca do esconderijo no qual João Alves refugiou a equipa da imprensa na véspera da final da Taça de Portugal que o Estrela viria a ganhar. Foi um furo.

Chamavam-lhe, carinhosamente, o Foca. O tempo fez dele um homem de sete ofícios. «O verdadeiro chefe do departamento clínico do clube era ele», conta Jorge Andrade que trabalhou com Mário muito criança ainda e sente bem como Veríssimo o ajudou a crescer. «Tinha coisas surpreendentes. Uma vez trouxe uma enfermeira para trabalhar com ele e foi uma confusão. O Jesus era o treinador na altura e ficou fulo. Disse que não queria lá a rapariga. O Mário era bem mais moderno do que todos nós. Precisava de um estagiário, foi buscar a miúda a Santa Maria para o ajudar. Para ele era naturalíssimo. Mas acabou por a mandar embora. Éramos ainda muito presos ao futebol machão».

Mário Veríssimo chegou a jogar futebol no Odivelas mas rapidamente desistiu para se tornar enfermeiro. Trabalhou no Hospital de Santa Maria mas, em 1976, aceitou o convite para trabalhar no Estrela da Amadora e foi, contente por viver mais de perto a sua paixão pelo futebol.

Trabalhou com vários treinadores, de Fernando Cabrita a José Medeiros, de José Torres a Jesualdo Ferreira, Jorge Jesus, João Alves e Manuel Fernandes. «Tinha um jeito especial para lidar com os mais novos. Às vezes parecia bruto. Como se fôssemos recrutas da tropa. Se algum de nós se queixava de uma dor qualquer, punha-nos a andar: ‘Isso não é nada, seu preguiçoso. Não queres é trabalhar. Vai correr para o campo que isso passa já. Deixa de ser aldrabão’. Sabíamos que, com ele, as tangas não pegavam».

Teve uma relação de especial amizade com Matine, era pai da Paula e sogro do meu bom amigo Francisco Martins, proprietários do restaurante Franguinho Real, ali a Arroios, que se transformou num local de preferência para muita gente ligada à imprensa, ao desporto e ao futebol em particular. Promoveu os almoços da equipa técnica, às sextas-feiras, no Caravela, onde se reunia um grande grupo para esticar a conversa entre os dois treinos, o da manhã e o da tarde. Com o tempo, a influência de Mário Veríssimo no clube foi crescendo, indo para além da restrita função de massagistas. «Todos gostavam de ouvir a sua opinião, fosse para o que fosse», prossegue Jorge Andrade. «Era uma pessoa com uma capacidade de síntese notável. Em três frases ficávamos a saber o que pretendia. No meu tempo, o médico do Estrela era o dr. João Pedro, mas tinha uma vida muito ocupada e não ia muito à Amadora. Delegava tarefas no Mário com toda a tranquilidade. E ele aceitava esse aumento e trabalho, sempre animado, com um humor que podia ser assassino».

Nos anos 80, Mário Veríssimo foi convidado para auxiliar o corpo clínico da seleção nacional. Viveu por dentro a alegria da qualificação para o Campeonato da Europa de 1984 depois da célebre vitória sobre a URSS na Luz. Seria mais um momento histórico para guardar na história da sua vida plena de episódios curiosos. «Tinha um adjunto, o Horta. Com ele era a brincadeira total. Porque o Horta tratava tudo com gelo. Imagina que uma vez, no Estádio da Luz, contra o Benfica treinador pelo Manuel José, em 1998, salvo erro, um jogador nosso partiu a perna e o Horta entre no relvado a correr para lhe meter gelo. Depois, claro, o Foca dava-lhe broncas valentes e a gente ria à gargalhada. Era um tipo muito atualizado e muito organizado. Em termos musculares era do melhor que já vi. Dizíamos o sintoma e ele diagnosticava o problema de imediato e propunha a solução. Sentíamo-nos em muto boas mãos com ele. Apesar de nos tratar com recrutas militares, como eu já disse. Gente muito boa cuja partida me deixa triste. E cheio de saudades desses bons tempos».

Era o feitio especial de Mário Veríssimo que contagiava a equipa, desde dirigentes a jogadores. Todos os que com ele trabalhavam sentiam o seu espírito positivo e dispunham-se a dar mais qualquer coisa de si próprios. Quando era ríspido e soltava algumas expressões menos agradáveis expressava a sua natureza ambiciosa e a sua vontade em evoluir em todos os campos da profissão e da vida. «Até certo ponto era o psicólogo do Estrela da Amadora», conclui Jorge Andrade. «Podia dar-nos um grito: ‘Deixa de ser queixinhas, seu maricas, vai para o treino, a enfermaria não serve para albergar preguiçosos!’, mas também entendia perfeitamente quando estávamos mais em baixo e, aí, tinha sempre uma palavra de encorajamento. Tenho de reconhecer que aprendi muito com ele».

Trinta anos ao serviço de um clube é mais do que motivo para que a sua morte tenha sido um choque violento para o Estrela da Amadora. Recordo-me de algumas conversas com ele nesse tempo já tão antigo que traz consigo mais esquecimento do que lembrança. Não, não foi o amigo de Jesus que morreu. Foi Mário Veríssimo, um dos nomes incontornáveis de uma instituição que vive momentos infelizes. Abandonou a Reboleira em setembro de 2009, depois da declaração de insolvência do Estrela. Volta e meia aparecia nos jogos das velhas guarda. Matava saudades. Eu, que não voltarei a encontrar, guardo aquele abraço que ficou por dar.