A ameaça e o desafio

Assistimos a uma Europa sem alma, sem comando, cheia de tiques de correcção política, palavrosa e convertida em euros. Deixámos de ter estadistas que viam longe, para dar lugar à política que não enxerga para além do curtíssimo prazo.

1. Vivemos numa época de êxtase científica, onde o infinito parece ser o limite. Temos, ao nosso dispor, uma imparável parafernália tecnológica. Universalizaram-se poderosos meios virtuais de comunicação, com o que de maravilhoso e danoso nos trazem. Glorificámos o homo economicus e transformámos a economia de mercado em sociedade de mercado. Endeusámos a globalização económica e informacional e ignoramos os seus perigos morais. Valoriza-se mais o crescimento económico do que o desenvolvimento humano. Estimula-se a apologia e o elogio do sucesso, enquanto se desdenha da compaixão por quem fracassa. Fomenta-se, sem rodeios, o monopólio do ter, que tantas vezes esmaga a dignidade do ser. Desprezámos a aldeia para aumentar o urbanismo descontrolado e o asfalto. Vivemos prenhes da nova ideologia do actualismo, que secundariza o tempo que está para além do dia seguinte. Erguemos o utilitarismo como a ética da conveniência e o egoísmo como a ética intergeracional. Convivemos com uma insidiosa métrica do valor da vida, através da qual ser velho é um problema e nascer é uma inconveniência. Continuamos, apesar das declarações proclamatórias, a ver a natureza como uma mera coisa instrumental a usar, abusar e saquear. Exaltamos a exclusividade dos direitos e fragmentamos os correspondentes deveres. Esquecemos que a noção de direitos humanos é ilusória quando se separa o direito do dever. Enganamo-nos quando, entre o bem e o mal, criamos uma falsa e perigosa categoria ética, a da indiferença. Desbaratamos energias no domínio dos cuidados de saúde para nos envolvermos em maniqueísmos que nada resolvem e tudo enquistam. Esbanjamos investigação e dinheiro em meios de guerra nucleares, urânio enriquecido, armamento sofisticado, armas químicas, mas não temos sido capazes de erradicar a malária que mata em África, e outras doenças, só porque escolhem os pobres para seu alvo. Desmerecemos o direito natural universal que decorre da natureza humana e dos seus fins para tudo concentrar no direito positivo contingente, que, não raro, contraria o direito natural. Adulteramos o bem comum, enquanto expressão ética e dimensão social e comunitária de fazer o bem e enquanto razão de ser da autoridade política. Desvalorizamos a família e o lar (palavra ora em desuso) como epicentros da educação, da solidariedade e de transmissão da vida, em troca do individualismo, da efemeridade e do hedonismo. Trocamos valores sólidos pelo subjectivismo e relativismo de meras opiniões que nada valem por tudo quererem valer. Dividimos a força da verdade e multiplicamos a mentira, o rumor, a fantasia, a calúnia e o boato. Promovemos a primazia do número e o sufoco da estatística, como formas traiçoeiras de ditar políticas e de iludir as muitas formas de exclusão e de pobreza. Satisfazemo-nos com a supremacia das circunstâncias sobre nós próprios. Reduzimos os agrupamentos humanos a arquétipos formatados em visões abstractas e objecto de decisões frias e distantes. Assistimos a uma Europa sem alma, sem comando, cheia de tiques de correcção política, palavrosa e convertida em euros. Deixámos de ter estadistas que viam longe, para dar lugar à política que não enxerga para além do curtíssimo prazo e alimenta (e se alimenta) de epifenómenos populares, populistas ou seja lá o que for.

Somos de um tempo em que uns acusam outros de culpas, não raro por nada de importante e por tudo de insignificante. Tão concentrados estamos nas verdadeiras ou inventadas culpas, que esquecemos as soluções ou os caminhos a trilhar. Trocámos a segurança das soluções pela pressa das impressões. Para isso, menosprezamos a memória, alimentados por uma insidiosa cultura do presentismo e do descarte. Hoje, em muitos domínios, o que importa não é tanto fazer ou não fazer, é mais o dizer, o anunciar, o prometer. A erosão memorial é mais gratificante para quem anuncia do que para quem age. Sacrificamos o essencial, seduzidos que estamos pela obsessão da quantidade, da futilidade, senão mesmo da inutilidade. Como ilustrativamente, nos diz um provérbio, creio que chileno, «à procura de água, encontrámos petróleo e morremos à sede».

Propositadamente estou a escrever na primeira pessoa do plural, e não num anónimo sujeito nulo. Mas – perguntará o leitor – porquê nós, se eu não tive nada a ver com isso? Fi-lo, desde logo pensando em mim, tendo presente um texto do filósofo e eticista Emmanuel Levinas, em Ética e infinito, por sua vez baseado no que Dostoiévski, escreve em Os irmãos Karamazov: «Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, eu mais do que os outros. Não devido a esta ou àquela culpabilidade efectivamente minha por causa de faltas que tivesse cometido, mas porque sou responsável de uma responsabilidade total».

 

2. Enfim, vivemos (vivíamos) numa roda aparente, enganadora e solipsista, que muitos julgavam inexpugnável. E, de repente, um vírus do tamanho de nada consegue, planetariamente, pôr em causa este estado de coisas. Um quase invisível inimigo de cerca de 500 nanómetros, isto é de 0,0000005 milímetros, ataca-nos na nossa mais sagrada e vulnerável expressão, a da vida. Perante este combate, tudo o resto se esvanece. O que ontem era importante, hoje passou a ser dispensável. O que ontem era urgente, diluiu-se na sua quase sempre falsa pressa. Ninguém sabe como esta situação vai evoluir, mas o despertar das consciências deve ser encarado como uma boa lição a tirar para o futuro. Este é um ponto que nos deve tornar mais avisados em relação ao servilismo do dinheiro, à tirania da ambição desmedida, à pobreza espiritual e ao pendor excessivamente materialista em que muitas vidas se deixaram aprisionar. Esta guerra silenciosa que o mundo enfrenta abre-nos e alerta-nos para as verdadeiras e profundas prioridades de governantes e governados.

Por aqui me fico nesta tentativa, reconheço que pessimista, de observar o mundo agora confrontado com o brutal ataque de um traiçoeiro microorganismo. Mas, também, no optimismo esperançoso da lição que saibamos tirar desta ameaça. E se só o nosso comportamento pode erradicar este pesadelo, que ele sirva também para prevenirmos o nosso futuro. Mais humanidade, precisa-se!

por António Bagão Félix
Economista