De uma estranha pneumonia em Itália, ao “estádio zero” e à tragédia

Suspeita-se que a covid-19 se tenha espalhado por Itália muito mais cedo do que se pensava. Mas tudo piorou com um jogo de futebol que destruiu uma geração em Bérgamo.

O falhanço de Itália, que não conseguiu conter o alastrar a covid-19, resultando quase 60 mil infetados e mais de 5400 mortos, instou os restantes países europeus a agir. Em Espanha, o despertar parece ter sido tarde demais – já ultrapassou os 30 mil infetados e mais de 2200 mortes devido ao novo coronavírus. No epicentro do surto em Itália, na Lombardia, há boas notícias: pelo segundo dia consecutivo, houve uma ligeira diminuição, nos pacientes hospitalizados – ontem passaram de 9438 para 9266. Mas a mensagem foi clara: “Não é para relaxar, mas vemos uma luz ao fundo do túnel”, declarou o vereador local Giulio Gallera. 

Face ao desastre, importa saber como se chegou aqui. Talvez a covid-19 esteja há muito mais tempo nas ruas italianas do que se pensa, declarou o diretor Instituto para Investigação Farmacológica de Milão Giuseppe Remuzzi. É que os médicos do norte de Itália, a região mais afetada da Europa, “lembram-se de ter visto uma pneumonia muito estranha, muito grave, particularmente em pessoas mais velhas em dezembro e até novembro”, contou à NPR.

“Isto significa que o vírus estava a circular, pelo menos na Lombardia, e antes de estarmos conscientes deste surto ocorrer na China”, concluíu Remuzzi. O primeiro caso conhecido do novo coronavírus – não tinha nome na altura – foi registado, a 31 de dezembro, em Wuahan, epicentro inicial da pandemia.

Já em Itália, um dos primeiros países a suspender os voos para a China, a 31 janeiro, quando dois turistas deram positivo ao vírus, o primeiro caso registado de transmissão local de covid-19 foi apenas a 21 fevereiro – muito antes dos possíveis casos referidos por Remuzzi. “Quem chamamos de paciente 1 provavelmente era o paciente 200”, disse o infectologista Fabrizio Pregliasco ao El País.

 

Conto de fadas transformado em tragédia Mesmo que o novo coronavírus já estivesse a fazer vítimas em Itália, sem se saber, suspeita-se que a grande explosão de casos tenha surgido com o jogo entre o Atalanta, uma equipa de futebol sediada em Bergamo, e o Valência, para a Liga dos Campeões, a 19 de fevereiro, em Milão. Na altura, parecia um conto de fadas: na primeira época da equipa de Bergamo na mais prestigiosa competição europeia, venceram por 4-1 o Valência. Houve festa nas ruas da cidade, mas hoje há pouco que celebrar.

“Essa noite foi como tocar no céu”, assegurou Valerio, de 36 anos, um dos organizadores da claque do Atalanta, a Curva Nord. “A agregação de milhares de pessoas, a dois centímetros umas das outras, ainda para mais associada com as compreensíveis manifestações de euforia, gritos, abraços, pode ter favorecido a replicação viral”, notou Francesco Le Foche, diretor do departamento de doenças infecciosas do hospital Humberto I, em Roma, em entrevista ao Corriere dello Sport.

“A vitória contra o Valência parece tão distante, presa no passado, há um século atrás”, contou Valerio à inews. Agora, as famosas ruas medievais no centro da sua cidade estão vazias, os habitantes abrigados por receio da covid-19. “A tristeza está em todo o lado”, disse à Sky News Francesca, uma habitante de Bergamo. Não é claro ainda o número exato de mortos – muitos idosos morreram nas suas casas. “É doloroso que eles estejam sozinhos”, lamentou Francesca, entre lágrimas. 

Com mais de seis mil pessoas infetadas, numa cidade com cerca de 122 mil pessoas, o sistema de saúde colapsou. Apesar da vontade mostrada por muitos profissionais de saúde – cerca 7900, de toda a Itália, voluntariam-se nos últimos dias para ir para a Lombardia, quando a expectativa era que fossem 300 – faltam meios básicos. Ontem, a polícia de Bergamo anunciou ter recuperado cerca de 250 tanques de oxigénio de farmácias ou de casa de pessoas que morreram nos últimos dias, para serem reutilizados por outros pacientes.

 

Lições Se em Bergamo a tragédia está bem presente, o resto do país ainda precisou de ser acordado. “Temos de nos apressar”, implorou a semana passada o vice-presidente da Cruz Vermelha chinesa, Sun Shuopeng, quando já tinham morrido mais 3400 pessoas devido à covid-19 em Itália. Esta organização foi enviada para o país após o surto estabilizar na China, com um saldo que ultrapassou os 81 mil infetados e 3200 mortos.

“É tempo de encerrar as atividades económicas e proibir o movimento de pessoas”, foi obrigado Shuopeng a avisar, explicando: “Todos têm de ficar em casa, de quarentena”. Apenas depois disso, no sábado, foram proibidas as atividades desportivas no exterior, mesmo que individualmente, bem como o uso de máquinas de venda. Também foram finalmente encerradas todas as atividades económicas não essenciais.

Agora, a expectativa é que não tenha sido tarde demais. Mas continuam a ser precisas mais medidas de proteção dos médicos que enfrentam a avalanche de casos nos hospitais italianos. “Os nossos colegas europeus estão a contrair a doença na sua prática médica quotidiana, e a proporção é bastante semelhante à situação anterior em Wuhan”, avisou à Bloomberg Wu Dong, professor num hospital universitário em Pequim.

 

“O frio é necessário” Entretanto, na comunidade de Valência, destino de muitos dos fãs que assistiram ao jogo entre o Atalanta e o Valência, já houve mais de 1900 casos registados de covid-19, causando 94 mortos – aliás, o Valência anunciou a semana passada que 35% da sua equipa de futebol, incluindo jogadores e funcionários, deu positivo ao novo coronavírus.

Contudo, o epicentro do surto espanhol continua a ser Madrid. Ontem, no dia mais mortífero do surto em Espanha – foram 462 mortos em 24 horas – a situação chegou ao ponto de ser anunciado que o Palácio do Gelo, um local de desportos na neve em Madrid, passará a ser usado como morgue. “O frio é necessário para manter os cadáveres”, explicaram as autoridades, citadas pelo El País.