Pandemia e habitação

O ritmo quotidiano é martelado pelo anúncio do número de mortos em Itália; no entanto, no meio desta grotesca realidade, é obrigatório a cada Governo atender tanto à emergência da pandemia, como ao cuidado dos que estão a ficar para trás.

Hoje, os pequenos negócios estão fechados, não por incompetência sua, mas porque é fundamental o isolamento social para enfrentar o pico da pandemia. Desde lojas, restaurantes, designers, cabeleireiros, atividades desportivas, sejam trabalhadores independentes, proprietários ou trabalhadores dependentes, não vão receber no final do mês aquilo que precisam para fazer face às suas despesas, particularmente àquela que tem mais peso no agregado familiar, a habitação.

No pacote de medidas de apoio à economia o Governo anunciou esta semana mais duas medidas para enfrentar este sufoco, além das previstas na Lei 1-A/2020 onde já foram proibidos despejos. As duas novas medidas pretendem aliviar as famílias do pagamento mensal para habitação, crédito ou renda, para quem comprovar a perda de rendimentos como consequência do estado de emergência. A primeira medida, implementada no Decreto Lei 10-J/2020, estabelece a possibilidade de existir uma moratória, suspendendo o pagamento das prestações mensais ao banco até 30 de setembro. A segunda, ainda apenas em anúncio, cria um regime excecional e temporário de mora no pagamento de rendas concedendo empréstimos aos arrendatários.

É importante relembrar o histórico do mercado da habitação em Portugal. Entre 2017 e 2020 foi ganhando fôlego, alcançando, em 2019, um valor recorde de contribuições para o IMT. Este valor espelhava a dinâmica económica não só das vendas imobiliárias, mas de todo o setor da construção e também do mercado de arrendamento. O mercado da habitação estava a funcionar e a arrastar para cima todos os indicadores económicos. Em Lisboa, as rendas também subiram, muito acima dos rendimentos, tornando-a numa das capitais europeias onde o esforço das famílias para pagar a renda era dos mais altos, cerca de metade do seu rendimento total. O Estado, que só deve entrar onde e quando o mercado falha, nestes últimos quatro anos, falhou. Recolheu impostos. Apresentou um superavit, mas não foi capaz de cumprir a mais básica das suas responsabilidades públicas em anos de mercado especulativo: disponibilizar as propriedades abandonadas do Estado aos que estavam a ficar para trás.

Nestes tristes dias que vivemos irá passar despercebido um email enviado a 23 de março pela Fundiestamo aos projetistas participantes no único programa público de disponibilização das propriedades do Estado, chamado Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE). Este FNRE, constituído em 2016, identificou até 2019 cerca de 800 edifícios abandonados e, destes, selecionou 180. O FNRE ia utilizar dinheiro do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) para fazer as obras e disponibilizar os edifícios com rendas acessíveis garantindo rentabilidades de 4%. Depois de vários alertas que o FNRE não ia funcionar, eis que a Fundiestamo, em março de 2020, anuncia o óbvio: «… a elaboração dos planos de negócio veio a revelar que a larga maioria das operações não é viável, seja por não se atingir o valor necessário para as obras, seja por não ser expectável atingir a rentabilidade anual líquida de 4% exigida pelo FEFSS, o participante em capital…».

Estes 800 edifícios públicos vão continuar vazios e a apodrecer enquanto o governo desenha modalidades de empréstimo para aguentar as rendas de mercado. Serão números pouco relevantes para a quantidade de números dramáticos que hoje pontuam as nossas vidas, mas não deixam de ser números sem sentido. Será assim tão difícil pôr estes edifícios vazios do Estado a uso?