Os otários não acabam assim…

Ginésio era um daqueles fulanos com jeito para tudo, embora tivesse sido preferível que não tivesse tido jeito para certas coisas

Dois caipiras e um colono italiano chegam a São Paulo. Perdidos na cidade grande, pascácios por natureza, deixam-se enganar por um malandrim que lhes vende um ’bonde’, que é como eles por lá chamam aos elétricos. «Lá vem a lua por detrás da pimenteira/Já me dói o céu da boca de beijar moça solteira», ouvia-se na banda sonora do filme que contava essa história dos caipiras e do colono italiano e que tinha o título de Acabaram-se os Otários. Na vida real, os otários eram um só, um desgraçado de um mineiro burro que achou por bem gastar todo o seu dinheiro na aquisição de um ‘bonde’ a um caviloso sem escrúpulos. Isto passou-se em 1929 e Ginésio Soares de Arruda Junior tinha assinado o primeiro filme sonoro da história do cinema brasileiro.

Ginésio era um daqueles fulanos que tinha jeito para tudo, embora assim à distância até fosse de agradecer que não tivesse tido jeito nenhum para algumas coisas, como a música sertaneja, por exemplo, da qual foi um dos precursores sem ter percebido a devido tempo que estaríamos todos um pouco melhor sem ela.

Em Acabaram-se os Otários, Ginésio não se contentou em ser realizador. Como eram precisos dois caipiras, fez questão de ser um deles. A imagem colou-se-lhe ao pêlo como o chapeuzinho de palha se lhe colou à cabeça. Sentiu-se bem como parolo e só não se tornou num porque já o era desde o dia em que nasceu, em Campinas, no dia 28 de maio de 1898.

Não vale cair no exagero de dizer que Ginésio se limitou a ser caipira como caipiras eram os seus programas na_Rádio Tupi, de São Paulo, ou o seu grupo de teatro Genésio Arruda e Sua Gente. Se em 1929 fez o primeiro filme falado em portuguez, assim mesmo com Z, como anunciavam os cartazes, dois anos mais tarde saiu-se com outra novidade que deu brado por todo o Brasil: dirigiu Campeão do Futebol, com Otília Amorim, a cantora de Desgraça Pouca é Bobagem – «Jurei, que nunca mais na vida/Havia de querer ninguém/Mas você veio sem piedade e compaixão/E entrou como um raio de sol/Pela janela aberta do meu coração» – e Paraguassu, o tal que tinha o céu da boca dorido de beijar moça solteira mas ainda teve o descaramento de entoar: «Foi num beijo verdadeiro/Que trocamos, o primeiro/A selar o nosso amor/E depois desse momento/Só me deste de tormento/Me tornaste um sofredor». Convenhamos que é preciso pachorra para tanta caipirice…

Vem a calhar a pergunta: que fazem estes dois caipiras, Otília e Paraguassu, num filme sobre futebol? Estariam melhor em Acabaram-se os Otários, não se desse o caso de Paraguassu já ter passado por otário na película referente. Basicamente, limitam-se a cantar musiquinhas pouco imaginosas ao longo de uma espécie de biografia dos melhores jogadores brasileiros até à época. Biografia sim, mas bastante ficcionada. Ginésio tinha mais alma de palhaço do que de diretor. Talvez tenha sido esse o motivo para convidar gente com nomes tão estrambóticos como Araken Patusca, do Santos, ‘Ministrinho’, do Palestra Itália, ou Tuffy, o guarda-redes do Corinthians.

Friedenreich não podia faltar, mas esse nem era por causa do nome esdrúxulo, filho nascido de um imigrante alemão e de uma nega fulô que lhe servia de empregada, e sim porque todos o consideravam o melhor dos melhores. Além do mais era um ator nato, coisa que Genésio só conseguia ser através de papéis nos quais pudesse enrolar a língua e repetir a palavra aperreado para aí uma dúzia de vezes.

Arthur Friedenreich foi, sem dúvida, a estrela maior de Campeão do Futebol. Jogava então no São Paulo e estava à beira de tomar uma das decisões mais difíceis da sua vida: alistar-se no exército paulista para combater, de espingarda na mão, a ditadura de Getúlio Vargas. Foi sempre uma figura do espetáculo, até quando alisava a carapinha à custa de brilhantina para fazer de conta que era branco em vez de mulato. Diz a lenda que Fried, ‘El Tigre’, marcou 1329 golos ao longo da sua carreira. E que nunca falhou um penálti. O próprio alimentava esses número como quem dá milho a um canário. E dizia: «Uma mentirinha nunca fez mal a ninguém».

Já Pedro Sernagioto, que ganhara a alcunha de ‘Ministrinho’ por ter tomado o lugar de outro grande ponta-direita chamado Giovanni del Ministro, transferiu-se para a Juventus, de Turim, enquanto Araken Patusca de Oliveira abandonou o futebol para trabalhar num laboratório de produtos químicos antes de se tornar jornalista e escrever um livro com o título Os Reis do Futebol. Também daria um bom filme. Aliás, todos eles deram um filme. O filme do caipira Genésio. Infelizmente para todos eles o filme além de ser fraco foi do tempo do sonoro. Teria sido melhor vê-los em silêncio. Mesmo com a desesperante voz de Paraguassu ao fundo, em tremeliques de pinga-amor: «Já tudo dorme, vem a noite em meio/A turva lua vem surgindo além/Tudo é silêncio; só se vê nas campas/Piar o mocho no cruel desdém». Mais caipira era impossível. Campas e tudo.

afonso.melo@newsplex.pt