E, de repente, o mostrengo, imundo e grosso, veio querer o que é nosso, e tirou-nos carinhos, e abraços e beijos e afagos. A cada dia que passa, rouba-nos um gesto; a cada hora que passa, obriga-nos a ficarmos mais longe. Já há gente que vive na mesma casa e não se toca. Já há sorrisos embaciados que deixaram de brilhar. Já não me deixam, tonto de ternura, pousar os lábios na testa suave dos meus pais. Tiraram-nos a companhia dos filhos e dos irmãos; mandaram-nos ser estranhos dos nossos amigos; e esquivos e desconfiados, temerosos e brutos de uma rudeza desconsolada.
O mostrengo veio lá do fim do mar numa noite de breu e sujou de sombras o céu que hoje não tem nuvens. Céu incompleto de quem perdeu a liberdade. Céu exclusivo de pássaros e inacessível aos sonhos imediatos, porque o torcionário mudou as regras do tempo e deixou-nos apenas a esperança que ele passe depressa o suficiente para que certas coisas não fiquem definitivamente por fazer.
Olho a rua e não passa gente. E quando passa, passa sozinha, porque o mostrengo veio dessa morada onde ninguém o via mudar, também, a regra das distâncias. Vejo-os fugirem uns dos outros com medo uns dos outros e com medo de si próprios. O mostrengo à roda da nau rodou três vezes e anunciou, chiando com a voz das cavernas que não desvenda, que cada um terá de carregar aos ombros a ameaça da morte alheia e quer fazer de nós assassinos silenciosos, anónimos e inevitáveis. Voou sobre toda a gente com a maldição presa nas garras de sermos condutores da nau da morte e não há homem do leme que possa retirar das nossas mãos esse toque destruidor que não escolhe vítimas. Cada um de nós é, hoje, uma arma pronta a disparar. Cada um de nós é uma arma capaz de matar os que mais amamos. Cada um de nós está armadilhado por um mal que veio dos tetos negros do fim do mundo. E mandam-nos apenas estar parados.
Lembro-me de uma noite triste de chuva em Liverpool. Acho que tinha, como agora, um nó na garganta de uma ausência súbita, daquelas ausências que se tornam infinitas por mais que a gente faça por mantê-las vivas num lugar qualquer cá dentro ao qual têm direito. Porque nada tinha para fazer, caminhei por Kemlyn Road, protegendo-me inutilmente nos beirais, um rio ancho de água e homens e mulheres e meninos, ignorando as cordas molhadas do céu, unidos em vozes ora roucas, ora desafinadas, ora infantis: «When you walk through a storm/Hold your head up high/And don’t be afraid of the dark». E não, ninguém tinha medo da tempestade com os seus trovões volta e meia, como de costume atrasados em relação aos raios. Ninguém tinha medo da noite que ficara escura de uma escuridão sem nome. À medida que os passos se aproximavam de Anfield e ficávamos cada vez mais juntos, a amálgama de corações ia batendo ao ritmo das palavras: «Walk on through the wind/Walk on through the rain/Though your dreams be tossed and blown». E não, ninguém tinha medo do vento nem da chuva, não havia força da natureza que dobrasse a vontade de todos os que gritavam alto o seu direito à liberdade sem receios, à sua vida sem intervalos.
Houve o estádio e houve o jogo. Houve a coletiva conjunção de vontades, fisicamente exibida, coisa que agora deixou de haver._Mas houve, sobretudo, um aviso. Uma faca enfiada entre a terceira e quarta costela de um inimigo infame, que se esconde, incógnito, na cobardia. Não, não éramos muitos nessa noite de Anfield: éramos um só. E um eco prolongou-se pela noite. E um eco prolongou-se-me pela vida: «Walk on, walk on/With hope in your heart/And you’ll never walk alone/You’ll never walk alone/Walk on, walk on/With hope in your heart/And you’ll never walk alone/You’ll never walk alone!».
Por vezes, a resistência não passa de uma palavra. Por vezes a luta não passa de uma música como a que Richard Rodgers e Oscar Hammerstein I compuseram para um musical chamado_Carousel, em 1945, e ficou cravada no coração de Anfield.
Por vezes, no meio da solidão, é preciso encontrar um ânimo simples como o de Fernando Lopes Graça: «Não fiques para trás, ò companheiro!».
O mostrengo veio rodando nas trevas do fim do mundo para pôr um fim ao nosso mundo. Todos os dias, ele e a sua maldade, nos roubam um gesto. Todos os dias fico com os braços cansados dos abraços que não dou. Todos os dias quero rodear os meus filhos de afeto e oferecer aos meus pais um trejeito de carinho. Todos os dias tenho saudades do que venho deixando de ser. Todos os dias me perco, mesmo sabendo qual é o caminho. Todos os dias vamos ficando mais vazios porque a distância mata de forma lenta e cruel. Todos os dias estamos mais longe de nós mesmos porque somos, também, feitos dos outros. Alguns já ficaram irremediavelmente para trás. Mas, que importa? «Chegarão no nosso brado/Porque nenhum de nós anda sozinho/E até mortos vão ao nosso lado».