Ramadão. Os muçulmanos terão de fazer das suas casas mesquitas

Este ano, os muçulmanos não poderão quebrar o jejum do Ramadão em comunidade. E “as orações têm de ser em casa”, apelou o imã da Mesquita Central de Lisboa.

Há 1410 anos, o arcanjo Gabriel desceu sobre o profeta Maomé, numa gruta nos arredores de Meca, para lhe revelar o Corão, acreditam mais de 1,8 mil milhões de muçulmanos em todo o mundo. Desde então, isso é celebrado entre jejum e orações no mês santo do islão, o Ramadão, que começa esta quinta-feira. Será um Ramadão como nenhum outro, começando pelas mesquitas encerradas devido à pandemia, de Meca e Medina a Jerusalém, passando por Filadélfia ou Lisboa. 

“A minha mensagem para a comunidade é de isolamento total. As orações têm de ser feitas em casa e é possível fazê-lo, com a família”, disse ao i o xeque David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa. “É como se fosse uma pequena congregação. E quando uma pessoa vem à mesquita é para participar na oração em congregação”, explicou.

Não foi fácil explicá-lo aos fiéis, sobretudo no início, quando a pandemia parecia estar longe, centrada na China. “Quando se começaram a ver imagens do que acontecia em Itália, um país europeu muito próximo, com alguns casos no nosso país, é que as pessoas começaram a ter noção”, contou o imã.

Hoje assegura que a ampla maioria da comunidade apoia as medidas em vigor pelo menos até 5 de maio. “Mas é normal que as pessoas, habituadas a ir à mesquita, regressem, encontrem-na vedada e estranhem”, assegurou Munir. Aliás, logo no início de março, um fiel foi surpreendido ao dar com a Mesquita Central de Lisboa fechada. Então, simplesmente estendeu o seu tapete no chão e orou ali à porta, sozinho.

“Não é de ânimo leve que uma pessoa diz que a mesquita está fechada. É duro, dói”, lamentou o imã. Em várias ocasiões teve de lembrar aos fiéis que até a mesquita de Meca está encerrada ao público – meses antes da época do Haje, entre julho e agosto, quando milhões de peregrinos visitam a cidade santa, outro dos pilares do islão.

 

Nas cidades santas Até o grande mufti da Arábia Saudita, Abdul Aziz al-Sheikh, declarou que as orações do Ramadão deverão ser feitas em casa, esta sexta-feira. Entretanto, a Arábia Saudita já tinha cancelado a emissão de vistos para o Haje e proibido as cerimónias religiosas. Afinal, o país tem mais de 100 mortes e 10 mil casos registados de covid-19. E ainda está fresca a memória dos surtos da síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS na sigla em inglês), a chamada gripe dos camelos, entre 2012 e 2018.

Já em Jerusalém, uma cidade santa para muçulmanos, cristãos e judeus, a decisão de fechar a mesquita dourada de Al-Aqsa no Ramadão foi “dolorosa”, descreveu em comunicado o Waqf Islâmico de Jerusalém. Num ano normal, dezenas de milhares de muçulmanos visitariam diariamente esta mesquita para as suas orações noturnas do Ramadão, ou Tarawid.

 

Tristeza e esperança No resto do mundo, a situação não é mais fácil. Nos Estados Unidos, um dos países mais afetados pela pandemia, com mais de 767 mil casos registados e 40 mil mortes, a comunidade muçulmana de Filadélfia, uma das maiores do país, tenta adaptar-se.

“Estou muito triste”, lamentou Dana Mohamed, dirigente do Instituto Iqra, nos arredores da cidade. As suas celebrações do Eid, em 23 e 24 de maio, que marcam o fim do Ramadão, “geralmente juntam mil pessoas, com jogos e diversões para as crianças, pessoas a vender presentes e comida halal”, ou comida que segue os preceitos islâmicos, contou Mohamed ao Philadelphia Inquirer. Este ano, não poderão ser assim.

Com os cerca de 200 mil muçulmanos de Filadélfia confinados em casa, como tantos outros, há quem tente ver o lado positivo da tragédia. “Talvez Deus esteja a dizer-nos para ficarmos com a nossa família. E talvez, quando tudo isto acabar, saiamos daqui como indivíduos renovados”, sugeriu Amin Muhammad, imã de uma mesquita em Atlantic City, ao jornal norte-americano. “Temos a oportunidade de pensar profundamente sobre a nossa existência. E, em última instância, sobre a nossa relação com Deus”. 

 

Isenção do jejum? Além das orações conjuntas, o Ramadão é um momento de encontro, quando famílias, amigos, vizinhos quebram juntos o jejum, numa refeição chamada iftar: um dos cinco pilares do islão é que nestes dias não se coma ou beba do nascer ao pôr do sol, devendo os fiéis abster-se de fumar ou ter relações sexuais. Agora, naturalmente, essas grandes celebrações não são recomendadas. E alguns médicos já avisaram que o jejum pode aumentar a vulnerabilidade à infeção por covid-19.

O assunto não é consensual nem entre a comunidade científica nem entre os peritos religiosos islâmicos. Na Universidade Al-Azhar, no Cairo, uma das principais autoridades sunitas, foi proposto que a isenção do jejum no Ramadão – que abrange grávidas, viajantes, idosos e doentes – fosse estendida. A decisão foi que a prática continuaria a ser obrigatória, pelo menos até que os efeitos nocivos tenham comprovação médica.

 

Despedidas Em tempo de pandemia, já nem a morte é igual. O rito fúnebre islâmico é muito claro e estrito: os corpos devem ser sepultados o mais cedo possível, com uma oração e a cabeça virada para Meca, após serem lavados pela comunidade e envoltos num véu branco, simples, de algodão ou linho.

“Já não se pode lavar, já não se pode vestir”, lamentou o imã da Mesquita Central de Lisboa. Os mortos saem “do hospital diretamente para o cemitério. Rezamos a oração fúnebre, que demora nem sequer cinco minutos, e são logo enterrados, com o número mínimo de pessoas”, contou Munir