‘Violência pode não ser bem a dos números’

São várias as explicações para a diminuição do número de participações. Vítimas podem não ter oportunidade para denunciar ou agressores podem ter abrandado a violência física por estarem em casa e poderem controlar tudo. Hugo Guinote, da PSP, explicou ao SOL o que pode estar por trás dos números já conhecidos.

Os números mostram que as participações de violência doméstica registadas pela PSP e pela GNR caíram desde 19 de março perto de 40% em comparação com o mesmo período do ano passado. Mas isso está longe de significar que o fenómeno esteja a regredir em tempo de pandemia. Focando no meio urbano, que é competência territorial da PSP, registou-se entre 13 de março e 27 de abril um decréscimo de 34%, «sendo que a maioria dos padrões referentes a vítimas e a denunciados se mantêm: 80% das vítimas continuam a ser do sexo feminino e 20% do sexo masculino», revelou ao SOL Hugo Guinote, responsável pela divisão de policiamento de proximidade da PSP.

«Temos um acréscimo relativo da violência entre cônjuges, uma diminuição entre ex-cônjuges e assistimos a um aumento ligeiro da violência praticada contra descendentes e ascendentes», nota, lembrando que esta maior proporção da violência entre pais e filhos face aos números totais não significa que haja um aumento do número efetivo de casos – esse diminuiu.

«Na violência entre cônjuges há menos 200 participações (em relação ao período homólogo de 2019), mas a proporção que este tipo de violência tem hoje no total de participações por violência doméstica aumentou aproximadamente 5%», esclareceu Hugo Guinote, acrescentando que já entre ex-cônjuges se verificou uma queda acentuada para «menos de metade dos registos»: «No ano de 2020 temos aproximadamente 230 participações e no ano de 2019 tínhamos cerca de 500 denúncias».

Na violência entre pais e filhos (150 participações contra descendentes, face às 170 de 2019, e 105 contra ascendentes, face às 125 do ano passado), os números reais diminuíram, mas o peso deste tipo de agressões no total de episódios de violência doméstica do período de confinamento é superior: «Os valores em bruto são sempre menores, mas quando se compara o peso de cada uma das tipologias de violência este aumentou ligeiramente».

São muitas as razões que explicam a diminuição dos números reais e o peso no total de casos de violência doméstica: «Dos 20 casos de diferença entre 2019 e 2020, na violência praticada contra descendentes, […] alguns desses casos podem ter sido denunciados pelas escolas, são-no muitas vezes». Escolas que agora estão fechadas.

No total, no que toca ao crime de violência doméstica, a PSP recebeu 1400 participações neste período de 2020, quando no ano passado, no mesmo lapso de tempo, contava com mais de 2100 participações, o que corresponde à variação de 34%. A PSP tem competência territorial em cerca de 5% do território nacional, em que se concentra mais de 60% da população, explica Hugo Guinote.

Um aumento ‘tranquilizador’, que não tranquiliza a PSP

O aumento relativo das participações entre cônjuges é tranquilizador, mas nada mais do que isso. «Para nós é tranquilizador, porque as vítimas por estarem em confinamento com os agressores podem ter dificuldade em denunciar a violência de que são vítimas e este indicador vem de alguma forma demonstrar que há vítimas a conseguir contornar esse problema», afirma Hugo Guinote. Em números reais há menos 200 participações.

«Não obstante todo o nosso esforço de sensibilização, nós tememos que de facto a realidade possa não estar refletida nestes números», diz, reforçando que a PSP olha para a diminuição do número de participações de violência doméstica com «muita cautela»: «Não queremos ser nem pessimistas, nem otimistas. Temos a noção de que nesta altura são dados prematuros. Vamos aguardar pelos próximos meses para perceber se algumas das vítimas, que podem agora não estar a participar esta violência, com o final do estado de emergência se deslocam às esquadras para participar. Depois conseguimos atualizar os dados à data de hoje».

Mas há outras hipóteses que podem ajudar a explicar o facto de se assistir neste período a menos episódios de violência física em contexto doméstico.

Controlo pode ter abrandado violência física

«A violência doméstica assenta no poder de controlo que a pessoa agressora consegue exercer sobre a vítima. Ora, quando estamos em período de confinamento ou de recolhimento, esse controlo é facilitado, porque temos de estar no mesmo sítio e, portanto, a pessoa agressora tem menos necessidade de recorrer à violência para exercer esse controlo», explica Hugo Guinote ao SOL. «É, por isso, possível que esteja a acontecer uma menor violência física, mas já a violência psicológica e a violência sexual, essa pode estar a aumentar entre os cônjuges, fruto de um aumento de tensão», afirma ainda este responsável da PSP.

Neste período de 2020 estão apenas registados pela PSP oito casos em que houve ferimentos com alguma gravidade – valor idêntico ao do ano passado. E em 63% dos casos reportados não houve lesões, enquanto em 35% houve apenas ferimentos ligeiros – uma manutenção do padrão do ponto de vista percentual. Na área territorial da PSP não há registo de homicídios nos últimos tempos. 

Vizinhos apercebem-se mais e menores não denunciam

Outro dado a destacar é que, apesar de cerca de um terço das agressões serem presenciadas por menores, não há registo de nenhuma participação feita por uma criança neste período. Das escolas, que estão a funcionar à distância de um computador, também não têm chegado quaisquer participações a este órgão de polícia criminal.

Segundo Hugo Guinote, a PSP está a receber por estes dias algumas participações de vizinhos para o email violenciadomestica@psp.pt – através do qual qualquer um pode participar um caso pessoal ou que envolva terceiros. «O período de confinamento facilita isso, porque as pessoas têm de estar no mesmo prédio dia e noite», conta. Na maioria das vezes, depois de a polícia ser chamada ao local, as vítimas negam a agressão.

Os dados mostram também que tem mudado a forma como os alertas chegam à PSP: «Enquanto em 2019 52% das participações chegavam por queixa presencial da vítima e apenas 38% como consequência do policiamento de proximidade, em 2020 estes números quase se inverteram. Temos quase 39% das participações por queixa presencial e 47% fruto do policiamento de proximidade».

Perfis de agressores e o pico das tentativas de homicídio

Falar de um agressor tipo não é um tema pacífico, mas existem traços comuns que podem ser analisados. «A PSP está à vontade para falar nisso, porque somos dos organismos que mais tem defendido trabalhar com os agressores para defender as vítimas», refere o responsável ao SOL.

«Existem vários perfis e a nossa capacidade está em primeiro saber qual o tipo de agressor que temos pela frente e depois irmo-nos adaptando. Ao longo do tempo que a situação vai evoluindo é expectável que o comportamento do agressor também possa ser diferente. Uns vão num crescendo de violência e há outros que não – mantêm um padrão aparentemente estável e de repente podem ter um episódio muito violento», esclarece.

E a violência praticada por homens e por mulheres também é diferente, regra geral. «A violência praticada por homens é mais física, a violência praticada por mulheres é mais psicológica, isto num padrão genérico», afirma Hugo Guinote, adiantando que quando se chega a situações mais extremas, como homicídio, o modus operandi também varia: «O género masculino opta por uma violência mais explosiva, de impacto, as mulheres optam por outro tipo de violência, mais planeado, com recurso a outras técnicas».

A experiência no terreno também mostra que essa violência varia consoante se trata de uma relação heterossexual ou homossexual: «A violência de uma mulher numa relação homossexual aproxima-se em alguns padrões da violência que é praticada pelos homens».

Hugo Guinote revela ainda que a PSP está a acompanhar o que se passa noutros países e confirma que em alguns se registou um aumento da violência doméstica em período de confinamento.

Os dados da Polícia Judiciária revelam que entre 2 de março e 26 de abril dispararam as tentativas de homicídio – 48, quando no ano passado se registaram apenas 30.