13 de maio. Peregrinar com o coração

Este ano, milhares de peregrinos não vão ao Santuário de Fátima, nem vão percorrer o caminho a pé. As orações serão feitas em casa, apesar de, admitem, não ser igual, nem se comparar. ‘O sentimento não se explica’.

Os arrepios chegam quando pensa que este ano será diferente. A promessa feita há 25 anos, quando a filha nasceu, move Helena Domingos a pé até Fátima todos os anos. E, por esta altura, já tinha saído do Barreiro rumo ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima para pagar a sua promessa. Ao SOL, a peregrina do Barreiro conta a sua história: quando a filha mais velha nasceu, «ficou muito doente e ninguém sabia explicar muito bem o que era». 

Há 25 anos, prometeu que se a filha conseguisse ultrapassar a doença, iria todos os anos a Fátima a pé «por aquilo que a vida» lhe deu. A filha «tem muita saúde» e Helena já é avó de gémeos. Não começou logo o seu percurso, mas este seria o seu 12.º caminho de peregrinação com o grupo de 12 pessoas que a acompanha desde o início. E confessa: «Estou toda arrepiada só de pensar que esta noite (de quinta para sexta-feira) não saio para Fátima».

Com a pandemia, o cancelamento das peregrinações à Cova da Iria para celebrar o 13 de Maio foram suspensas e o Santuário estará vazio este ano. Vazio no sentido físico, mas a transbordar de fé por aqueles que estão em casa a rezar. Estes dias são de muita ansiedade, tristeza e há um «sentimento de impotência», conta Helena, pelo facto de não se fazer o habitual caminho. O seu grupo de peregrinos mantém o contacto, sobretudo através das redes sociais, e falam todos os dias. «E estamos sempre a dizer ‘a esta hora já estávamos a fazer isto’». «É com muita tristeza que fico em casa este ano, as borboletas já não estão no estômago, já estão na alma», conta Helena que diz não conseguir encontrar palavras para explicar a dor que sente. 

No início, assim que foi declarado estado de emergência, o grupo de Helena ainda pensou em fazer o caminho, mas depois logo perceberam que por «responsabilidade e respeito» o melhor seria ficar em casa. Normalmente, saem do Barreiro no dia 8 e chegam a Fátima no dia 12. Até Samora Correia, um percurso de 56 quilómetros, não existem albergues, nem qualquer tipo de apoio, a não ser o carro que habitualmente acompanha estes peregrinos. E este foi também um dos pontos que levou este grupo a decidir não fazer o caminho. «As dormidas são em pavilhões das câmaras municipais e isso também está fechado, mesmo que alguém queira ir, é muito difícil», explica. 

E a peregrinação a Fátima não começa no momento em que os peregrinos colocam o pé na estrada. A jornada começa a ser preparada em janeiro e, como aconteceu com outros grupos, os peregrinos tiveram de cancelar as dormidas que tinham agendadas. 

Agora, Helena Domingos vai rezar em casa. «Não é igual, nem se compara e o sentimento não se explica», diz. Não vai estar no Santuário, mas todos os dias reza o terço e pensa no caminho que estaria a fazer. E o Santuário, pela voz do padre Carlos Cabecinhas, deixou o apelo: «O Santuário existe para acolher os peregrinos e não o podermos fazer é motivo de grande tristeza, mas esta decisão é igualmente um ato de responsabilidade para com os peregrinos, defendendo a sua saúde e o seu bem-estar». Fátima pediu então aos peregrinos para ficarem em casa, para peregrinarem com o coração, acompanharem as celebrações através dos meios de comunicação social e colocarem uma vela acesa à janela. Para ajudar à peregrinação espiritual, o Santuário disponibilizou no seu site vários vídeos sobre o 13 de Maio. «Fátima lança-te o desafio de uma peregrinação mais essencial: o caminho é interior e poderá levar-te muito longe dentro de ti mesmo, ao encontro do santuário do teu íntimo», lê-se no site. 

‘Parece que ficamos em dívida’

Quando Helena Domingos começou a fazer o caminho a pé, já Luciana Nunes conhecia o «sentimento inexplicável» de chegar a Fátima. Este seria o 14.º ano consecutivo de peregrinação e as lágrimas caem automaticamente quando fala sobre o facto de não poder caminhar este ano. «Parece que ficamos em dívida», conta. 

Luciana Nunes entrou nestas jornadas depois de o marido ter sido submetido a um transplante. Não gosta de dizer que vai por promessa, mas sim para «agradecer tudo o que de bom acontece ao longo do ano». «Todos os anos vou agradecer e quando uma pessoa vai pela primeira vez, depois quer ir sempre», explica. Luciana conta que espera todo o ano pelo mês de maio e pelos dias em que vai fazer o percurso. Os filhos dizem muitas vezes que é tempo de parar, mas Luciana não consegue. «Posso nem ter mais férias durante o ano, mas aqueles dias tenho de tirar. Temos necessidade, o porquê não sabemos, mas temos de ir». 

A primeira vez que foi caminhar é recordada pelo cansaço e pelas bolhas nos pés. A preparação não tinha sido suficiente, mas nem isso parou Luciana. Depois do primeiro ano, garante que nunca teve problemas. E o mais «extraordinário», conta, é a chegada a Fátima: «Quando lá chegamos, podemos ir mal, podemos ir muito cansados, mas parece que ganhamos uma força e parece que acabámos de sair de casa, é inexplicável a força que se sente à chegada, é único». 

Este ano, Luciana celebra o 13 de Maio em casa com a ânsia de voltar à estrada. Ainda é cedo, mas assim que a vida regressar à normalidade, promete que a primeira coisa a fazer é ir até Fátima. «Espero que em outubro seja possível ir, ou antes, assim que for seguro e que alguém queira ir, eu vou logo também. Preciso muito de ir e até lá», conta Luciana. E Helena é da mesma opinião e espera ir ainda este ano. 

Peregrinar por outros caminhos

Todos os anos, em Fátima, há milhares de peregrinos e milhares de razões para estar ali. Uns por promessa todos os anos, como Helena Domingos, mas outros nunca foram por essa razão. Vão pela fé. Há mais de 20 anos, Maria Rosa da Costa, saiu de Coimbra com o marido rumo a Fátima. Nunca por promessa. Decidiu que estava na hora e o caminho de Fátima «com a mochila às costas» passou a fazer parte da sua rotina. «Isto já andava a ser pensado há muito tempo por mim e pelo meu marido, mas o tempo foi passando, porque quando casámos trabalhávamos e estudávamos e depois vieram as filhas. A dada altura, as filhas já eram mais velhas e então fomos», conta Maria Rosa Costa. 

Para explicar a razão pela qual vai a Fátima, esta peregrina de Coimbra conta que é «preciso partir para as coisas de forma despida». E recorda, sobretudo a primeira vez que foi. Não tinha o percurso estudado como tem hoje, nem tão pouco a preparação que tem hoje, mas no final sentiu de tal forma que valia a pena que voltou mais um ano, e outro, e outro. «Foi uma aprendizagem e a ideia era dormir numa residencial a meio do caminho. Chegámos a Pombal e o meu marido ia muito cansado. Numas bombas de gasolina que havia e que agora já nem existem, ele deitou-se no chão repentinamente e sentiu-se mal». Apanharam o comboio em Pombal e voltaram para trás, para Coimbra. No dia seguinte, foram de carro até Pombal e seguiram viagem a pé. A residencial, afinal ficava mais longe, mas depois de tudo, chegaram ao Santuário. 

Há mais de vinte anos, Maria Rosa Costa fez o percurso da estrada nacional. Entretanto, graças à Associação dos Amigos dos Caminhos de Fátima, descobriu que pode chegar ao Santuário por outros caminhos – mais bonitos e, sobretudo, menos perigosos. 

Também por caminhos que não as estradas nacionais vai o padre José Cruz, capelão na CUF Descobertas e no Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa. E neste tempo de pandemia é importante saber que «não somos apenas peregrinos físicos, somos peregrinos enquanto cristãos, mulheres e homens», explicou o padre José Cruz. Este ano, os peregrinos não vão fisicamente a Fátima, mas ficam «em casa defendendo algo que é extraordinário que é o bem estar pessoal, o bem estar da família e a saúde de todos». Quando este padre, que também é peregrino, regressa de uma peregrinação, conta que volta com «outro espírito e outra disponibilidade interior». E as formas de peregrinação são muitas. Para provar, o padre José Cruz deu o exemplo de uma senhora que, aos 80 anos «trazia consigo a mágoa de nunca ter ido a pé a Fátima com a filha ao colo como tinha prometido quando a filha nasceu, depois de um parto difícil». Então, a solução foi levar a senhora de carro até ao Santuário, e do carro até ao Santuário, ela foi a pé, com a filha ao lado. A promessa ficou cumprida, porque essa pessoa sentiu que foi com a intenção da promessa feita. «No seu coração, leva a intenção de cumprir essa promessa e Deus sabe a verdade do seu coração», contou.

Sobre a experiência do caminho até Fátima, Vítor Cabrita, peregrino a Fátima, quer no dia 13 de Maio ou noutra altura, resume-a de uma forma simples: «A Fátima vão os mais pobres e os mais ricos, mas a caminhar na estrada somos todos iguais». Já trocou uma viagem a Cuba por uma caminhada ao Santuário e nunca pagou promessas. «Não negociamos com Deus. Agradecemos. Pedimos muito, chateamos muito, isso sim», diz. 

Igreja pode fazer o mesmo que a CGTP

Um despacho publicado em Diário da República esta sexta-feira dá à Igreja liberdade para celebrar o 13 de Maio à semelhança da celebração da CGTP do Dia do Trabalhador no primeiro dia de maio. 

«Entendendo como relevante para a comunidade católica portuguesa a celebração das aparições de Fátima», o Governo decidiu que nos dias 12 e 13 de maio, as celebrações podem contar «com a presença de celebrantes e demais elementos necessários à celebração, convidados do Santuário de Fátima e respetivos funcionários, os quais devem observar o distanciamento físico de dois metros entre si». No entanto, a diocese de Leiria-Fátima já tinha anunciado no domingo passado que iria manter a sua decisão com o Santuário sem peregrinos tendo em conta a situação atual de pandemia.