Jamaica/Washington

Quando olho para a explosão social nas ruas das cidades americanas penso no bairro da Jamaica no Seixal.

É uma constante dos opinadores nacionais tecerem longos solilóquios sobre a América e sobre a maneira como a maior economia do mundo é governada.

Pessoalmente, quando olho para a explosão social nas ruas das cidades americanas penso no bairro da Jamaica no Seixal.

Em três séculos a América não conseguiu resolver os problemas que a herança da escravatura deixou. Mas o Portugal opinante, tão célere a criticar a América, parece ter esquecido que foram negreiros portugueses quem abasteceu durante mais de um século com empenho e diligência os mercados de escravos nas Carolinas, cujos descendentes se revoltam hoje nas ruas em protesto pela maneira como têm sido tratados pela sociedade que os explorou.

Apesar dos sinais, não parece haver cá uma consciência da gravidade dos problemas raciais que já se enfrentam e dos que se podem vir a enfrentar. De mito em mito, em irresponsável devaneio vamos seguindo rumo à indiferença e insensibilidade; que fomos colonizadores exemplares, o que é falso; que não traficávamos escravos porque eram outros que os capturavam, o que é cínico e hipócrita.

Neste mistificar obsessivo que vem desde o Estado Novo criou-se um convencimento coletivo que se vive aqui num panglossiano mundo das melhores práticas possíveis, ignorando a evidência de que se criou aqui um terreno tão fértil para o confronto racial como é o da América.

As Jamaicas do nosso descontentamento, que são tantas, deviam, quando finalmente as vemos, despertar-nos para a realidade. Por serem a denúncia da incapacidade dos sistemas políticos que nos governam. Mas isso não acontece. No Seixal, o mais vocal dos grupos políticos que temos e seguramente o mais sentencioso de todos, deixa que quase uma centena de famílias exista há décadas numa sinistra colmeia onde só se consegue viver porque quem lá está é gente de muita fibra, que sobrevive à custa de limpar casas dos outros e calcetar ruas. Bem pode o PCP ir declinar as suas periódicas litanias ideológicas para a Festa do Avante!, quando ali ao lado tem o exemplo vivo da sua indiferença para com a aflição de munícipes que são sua responsabilidade direta.

Portugal insiste em olhar para a América hoje com a curiosidade mórbida e distante de quem está a seguir um reality show quando devíamos estar a ler um aviso sério. Temos cá violência policial mais que suficiente para eventualmente ter que enfrentar aquilo que a sociedade americana hoje enfrenta. A facilidade e impunidade com que ainda hoje recorremos ao trabalho de facto escravizado na agricultura e na construção civil não difere muito da boçalidade com que abusámos seres humanos na nossa trágica história colonial. Com este oportunismo deixámos que se estabelecessem aqui comunidades economicamente desfavorecidas, facilmente identificáveis – sim, pela cor da pele.

É por isso que temos um claro problema de relacionamento a que chamamos racismo, que acaba por marcar tanto o abusador como abusado.

É por isso que temos e teremos arrastões, gangues e graffiti ameaçadores.

Tal como na América.

Entre nós um gritante exemplo está hoje no parlamento nacional. Joacine Moreira foi expulsa do próprio grupo político que ajudou a formar e que com assinalável oportunismo a queria usar como mero símbolo. Erradicada da sua comunidade natural foi remetida para um qualquer bantustão nas filas de trás do parlamento, onde é hoje a imagem da solidão política racialmente discriminada por um sistema que tenta «olhar para o lado e fingir que não a vê» como canta Bob Dylan. Mantendo-se igual ao que sempre foi, Joacine, na verdade, foi «apanhada entre o que gostaria de ser e o que realmente é» que foi como o filosofo afro-americano James Baldwin caracterizou os negros nos Estados Unidos.

É por isso que eu acho que, tal como na América, a menos que algo significativo seja feito por governos e sociedade civil, teremos aqui distúrbios raciais graves porque ainda não conseguimos integrar aqueles que escravizamos num passado que não é assim tão distante. No Seixal a Jamaica de uma câmara PCP é a prova contaminada com covid-19 de que não chegam ideologias exóticas para resolver problemas sociais. Nem se escondem esses problemas durante muito tempo com proposições declarativas e slogans. De facto, é altura ideal para citar a grande frase com que Karl Marx abre o seu ensaio Das Kapital: «Mutato nomine de te fabula narratur».

Marx escolheu uma citação milenar de Horácio para lançar a sua visão de humanização da revolução industrial do século XIX: «Muda-lhes os nomes e esta é a tua história».

E será a nossa história porque, em décadas de desmazelo e indiferença, deixámos que se criassem aqui todas as condições para ter a curto prazo os mesmos problemas que a América hoje enfrenta. A menos que acordemos.