A próxima pandemia. Como a humanidade está a acelerar o inevitável

Algures, um animal está infetado com uma doença que nunca enfrentámos. Talvez o passe a um porco, que por sua vez nos contagia. O risco, já se sabe, é que cause uma pandemia. E também está cada vez mais claro que estamos acelerar este processo. O SOL falou com cientistas para saber o que se passa…

A próxima pandemia. Como a humanidade está a acelerar o inevitável

Há acasos que mudam a história e o transbordar de doenças de animais para humanos é um deles. Muitas vezes, nem nunca chegamos a saber que aconteceu. Noutras, há um pequeno surto, localizado, que fica por aí. Raramente, surge uma pandemia como a atual, ou flagelos que atormentam gerações, como o HIV. Estes eventos são muito mais frequentes do que pensamos: estima-se que ocorram entre duas a seis vezes por ano. Tornaram-se cada vez mais recorrentes no último século e a culpa é nossa. O aumento desflorestação, o tráfico de animais selvagens, o aquecimento global, a produção massiva de gado e o crescimento de metrópoles só nos deixam mais expostos a doenças transmitidas por animais.

«Estamos a mudar como fazemos negócios com a biosfera, com o resto da vida na terra, e a natureza está a tentar dizer-nos algo quanto a isso», considera Aaron Bernstein, diretor do Centro para o Clima, Saúde e Ambiente Global, da faculdade de Saúde Pública T.H Chan, da Universidade de Harvard, ao SOL..«Tivemos alguns tiros de aviso. Tivemos o HIV, o ébola, a covid-19, e muitas outras doenças, que causaram imenso sofrimento humano e custos económicos. Não há nada escrito que diga que este vírus é o pior que poderemos ver».

Aliás, nas últimas semanas, voltámos a ver o antigo flagelo da yersinia pestis, a bactéria que causa a peste bubónica, também conhecida como a peste negra, tendo alguns casos sido relacionados com a caça à marmota na Mongólia. À primeira vista, parece assustador, tratando-se de uma doença que exterminou um terço da população europeia entre 1347 e 1351. Mas não é assim tanto: já não vivemos na Idade Média, a yersinia pestis é relativamente fácil de tratar e apenas é transmitida pelas pulgas que vivem roedores – as condições para isso acontecer em massa não são assim tão frequentes, exceto em algumas regiões em Madagáscar, RD Congo ou Peru.

Potencialmente bem mais perigosas podem ser as doenças transmitidas por via aérea, como uma nova estirpe de gripe, como a encontrada este mês por investigadores chineses: chamaram-lhe G4 e descreveram-na como tendo potencial pandémico. O vírus não parece reagir aos anticorpos criados pela exposição às gripes sazonais, e desde 2013 já tinha infetado 10% dos trabalhadores de suiniculturas testados – por sorte, por agora, não parece ter desenvolvido a capacidade de ser transmitida entre humanos.

«Pense em termos de uma fechadura e de uma chave. Para um patogeno infetar uma célula humana, precisa de abrir a porta. A covid-19 parece ter uma chave muito boa. Noutros casos, a chave não é tão boa e fá-lo de uma maneira muito ineficaz – conseguir nuns indivíduos, e não outros, pode estar relacionado com genética, grupo sanguíneo, etc», explica ao SOL Eric Fèvre, professor de Doenças Infecciosas Veterinárias da Universidade de Liverpool.

«Há alguma aleatoriedade envolvida», salienta. «É parte do motivo porque algumas doenças infetam meia dúzia de pessoas e desaparecem. O problema com doenças como a covid-19 é que, se infetaram espécies semelhantes a humanos – da perspetiva da chave e fechadura, um porco é muito como uma pessoa -, podem desenvolver a capacidade de infetar humanos muito antes de chegar a nós».

É por isso que, por todo o planeta, cientistas se atarefam a tentar evitar a próxima pandemia. Pode ser daqui a uns anos, pode ser daqui a umas gerações: o certo é que, algures, há um animal qualquer infetado com uma doença com a qual a humanidade nunca contactou, nem tem quaisquer defesas. «Não podemos impedir estas coisas de acontecer. Mas temos de compreender o processo através do qual acontecem, identificar os locais onde são prováveis e criar mecanismos de vigilância», diz Fèvre.

A boa notícia é que sabemos como diminuir a frequência destes eventos, acrescenta Bernstein. «Sabemos que os motores destas doenças emergentes são a destruição de áreas naturais, particularmente florestas nos trópicos, bem como o tráfico de animais selvagens. Ou o aumento da intensidade na criação de animais, com mais suiniculturas e aviários, que é um problema enorme no que toca ao risco de influenza». E, se tudo isto funciona como fósforo, «a urbanização e o aumento das viagens são deitar gasolina fogo».

 

A estrada na floresta

É a aqui que entra santíssima trindade do surgimento de novas doenças: uma floresta selvagem, uma produção de gado massiva e uma enorme concentração urbana. A disrupção causada pela atividade humana é uma excelente maneira de esbater a fronteira entre estes mundos.

Pense que, só em 2017, em média, foi destruído um campo de futebol de floresta por segundo: a área afetada foi equivalente a Itália, segundo a Global Forest Watch. Agora, imagine que parte das criaturas que lá viviam – no que toca a regiões tropicais, falamos de uma diversidade enorme – fugiram para campos agrícolas nos arredores, por exemplo. Ou viram o seu habitat reduzido e começaram a entrar em áreas humanas, à procura de alimento.

«Na capa da National Geographic adoram colocar imagens de uma floresta tropical atravessada por uma estrada. É a imagem perfeita de uma interface, porque mostra terra tão virgem e selvagem, com algo tão obviamente humano pelo meio, construído por nós», nota Eric Fèvre. «Esses locais são definitivamente um risco. Mas há tantos outros. Para mim, um enorme risco são ambientes urbanos».

«Os ambientes urbanos têm a sua própria ecologia, que nós criámos, de uma maneira que nem sequer compreendemos, e orlam ambientes mais naturais», explica o professor. «Talvez seja menos assim em cidades europeias, mas certamente é assim em cidades como Nairobi. Um lado de Nairobi é um Parque Nacional. Outro é um bairro de lata e outro e uma área de agricultura com alta densidade, cheia de gado. Potencialmente, todos influenciam o que se passa nas margens deste ambiente. E algumas dessas ecologias espalham-se para dentro da cidade».

É por isso que Fèvre vive na capital do Quénia, onde dirige uma equipa de epidemiologistas, biólogos e veterinários, que investigam doenças zoonóticas – ou seja, transmitidas entre animais e pessoas – negligenciadas. Nem de propósito, enquanto falava com o b,i. por Zoom pousaram no seu quintal alguns pássaros que estudara recentemente.

«Temos estado a estudá-los, em particular, para perceber o alastrar de bactérias resistentes a antibióticos», conta. «Em Nairobi, as pessoas usam demasiados antibióticos no seu gado doméstico. Eles criam resíduos, que são deitados fora sem cuidado, em ambientes urbanos densos. Quem é que surge para interagir com esses resíduos? Roedores e aves. Vêm e apanham bactérias, só por se alimentar», descreve o professor. «As aves apanham resistências a antibióticos, voam por aí, entram no meu jardim, onde interagem comigo e com os meus filhos. E podem, potencialmente, transmitir essas bactérias».

É que a humanidade está mais rodeada de doenças animais do que pensamos. Um bom exemplo é a leptospirose, que podemos apanhar por exposição a urina de rato – que se saiba, não é transmissível entre humanos. Nas cidades, uma área de risco seria as traseiras de restaurantes, onde ratos se juntam para fazer um banquete com os restos. Contudo, em tempos de pandemia, com tantos restaurantes fechados, os roedores mostram comportamentos «pouco habituais ou agressivos», avisou o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças norte-americano (CDC): caso se aventurem perto das nossas casas, à procura de comida, as consequências são imprevisíveis.

«É uma questão de contacto. Pode ser que haja patogenos a viver em reservatórios animais e que estão muito satisfeitos em lá viver. Na maior parte do tempo, há um certo equilíbrio ecológico com essa espécie, o que significa que não se transmitem para humanos. Noutras alturas pode acontecer. Descobrimos isso quando mudamos esse equilíbrio», considera Fèvre.

 

Tapar o balde

Na Malásia, no final dos anos 90, morcegos da fruta foram atraídos para mangueiras, que alguém decidiu plantar nos arredores de enormes suiniculturas. Levaram consigo o vírus Nipah, que causou vários surtos no Sudeste Asiático, com centenas de pessoas infetadas e uma taxa de mortalidade entre os 40% e os 75%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) – o último surto foi em 2018, em Kerala, na Índia. Os sintomas vão desde infeção respiratória grave, febre e náuseas, até encefalite, que pode resultar num coma ou morte, em poucos dias. Talvez nunca tenha ouvido falar deste vírus, que tinha tudo para ser uma brutal pandemia, mas não foi tão badalado quanto o SARS ou o ébola. Ainda assim, «o Nipah é um grande exemplo de escapar de boa», assegura Bernstein.

O vírus teve um percurso clássico: os morcegos infetaram os porcos, os porcos infetaram as pessoas. Como ninguém sabia o que se passava, as autoridades pensaram que era encefalite japonesa, transmitida por mosquitos, inutilizando as distribuições iniciais de mosquiteiros. Pelo menos 265 pessoas ficaram em estado grave, com 105 mortes, deixando a indústria de criação de porcos da Malária à beira do colapso.

Os casos subsequentes foram muito diferentes – aí, já havia transmissão entre humanos. «No Bangladeche e na Índia, a transmissão foi diferente, não foi através de porcos, foi diretamente de morcegos para pessoas, sobretudo através da seiva de tamareiras», relata o investigador. «No sudeste asiático, eles fazem um corte na árvore, para fazer xarope, e deixavam baldes a recolher a seiva. Os morcegos da fruta entravam nos baldes, bebiam o xarope e defecavam lá. As pessoas consumiam o xarope e ficavam doentes. Quando se descobriu isto, começaram a tapar o balde».

«O interessante é que no Bangladeche parece que a principal razão não foi a preocupação com o Nipah. Era porque gostavam um maior grau de pureza do seu xarope, para que tivesse maior valor no mercado, tapavam o balde porque não queriam que caíssem ramos e folhas», salienta Bernstein.

 

Loucura

Quando imaginamos o surgimento de uma nova doença para humanos, costumamos pensar num caso como o do Nipah: um agricultor pobre, num país em desenvolvimento, infetado por um animal no meio de uma floresta tropical. É um cenário que se repete, mas não é o único. Vivemos num mundo cada vez mais integrado, como mostrou o primeiro surto de varíola dos macacos – surpreendentemente, apareceu nos Estados Unidos, em 2003, quando foram infetadas pelo menos 71 pessoas, sem mortes.

«Há roedores, da África Ocidental, que são mascotes muito apreciadas por pessoas do Midwest», explica Fèvre. Referia-se ao cricetomys gambianus, uma espécie de ratazana gigante castanha – alguns destes animais foram colocados junto de cães da pradaria, nativos da América do Norte, que também foram infetados. «Há comércio de roedores da África Ocidental para os EUA, é completamente louco, se pensarmos bem. As pessoas compraram estas mascotes em lojas de animais e houve um surto, no Midwest, de uma doença viral originária do Gana». «Poderia ter sido um problema enorme, se o CDC não tivesse saltado imediatamente em cima da situação, imposto controlos… Aquela infeção em particular não era massivamente transmissível, não era um vírus respiratório, por isso não se agravou. Mas houve outras ocasiões em que não foi assim, como o Vírus do Nilo Ocidental ou o zika», nota o professor da Universidade de Liverpool.

É que estes dois vírus, transmitidos através de mosquitos, costumavam afetar apenas os países em desenvolvimento: com o aquecimento global, isso está rapidamente a mudar. Aliás, até na Alemanha já foram detetadas infeções do Vírus do Nilo Ocidental, trazido por mosquitos que surgiram no mais quente e seco verão da história alemã, em 2018 e que, contra todas as expectativas, sobreviveram ao frio do inverno.

«Sim, de facto os trópicos estão a expandir-se até Europa. Em Portugal vão começar a sofrer surtos de língua azul, doença de Lyme, Vírus do Nilo Azul, bem como outros vírus transmitidos por mosquitos. São doenças africanas, mas estão a chegar», avisa Fèvre.

 

Cidades de morcegos

Mas afinal, quando falamos da próxima pandemia, há algum suspeito principal? Algum tipo de patogeno particularmente perigoso, algum animal a que tenhamos de estar mais atentos? «Os vírus são mais prováveis de emergir para humanos, parcialmente porque há tantos, é uma questão de diversidade. E porque há mais vírus que têm rotas de transmissão mais acessíveis. Logo a seguir na lista vêm as bactérias. Basicamente, qualquer organismo que se multiplica muito rapidamente tem maior capacidade de evoluir. Grandes parasitas, como a malária, evoluem mais lentamente», responde Eric Fèvre.

Contudo, no que toca aos animais, a resposta é menos clara – mas, mais uma vez, o essencial é a diversidade. Nas últimas décadas, alguns surtos vieram de roedores, outros de aves ou de primatas. Mas o grande destaque vai para os morcegos, hospedeiros de coisas como o ébola ou coronavírus.

«Os animais são muito diversos. Os grupos de animais podem ser muito pequenos ou muito grandes. Portanto, quando falamos de humanos, falamos de uma espécie. Já aquilo a que chamamos morcegos, há centenas de espécies, com muita diversidade genética dentro das suas populações. Significa que há muitas oportunidades para que patogenos evoluam», explica o professor da Universidade de Liverpool. «E acontece que os morcegos têm ritmos metabólicos e maneiras de viver muito semelhantes aos nossos: vivem em populações densas, pendurados do teto de cavernas – é basicamente o mesmo que humanos a viver numa cidade, ideal para transmissão rápida», nota Fèvre.

Além disso, como os humanos, os morcegos também estão muito interligados, com grande facilidade em transmitir doenças entre populações. «Pense num rato, por exemplo. Pode viver num pequeno buraco, procurar alimento numa numa área relativamente pequena e regressar. A exposição é pouca. Mas um morcego vai voar, muitas vezes atravessando enormes distâncias, e expor-se a outras populações de morcegos».

No entanto, o problema não tem a ver com este ou aquele animal, este ou aquele vírus, frisa Aaron Bernstein. «A história das doenças infecciosas mostra que as doenças tendem a vir de onde as pessoas estão. Na China vive imensa gente, que tem invadido cada vez mais espaços naturais. Há uma história cultural que envolve medicamentos que são feitos com animais selvagens, levando pessoas a invadir a natureza», nota o professor de Harvard. «Por exemplo, sabemos que há imensos vírus em morcegos na Amazónia e que há imensos vírus em morcegos na China. No entanto, não vemos tanto esses vírus a entrar em pessoas no Brasil, mas vemos na China. Provavelmente é porque as pessoas estão a comer morcegos lá. Não temos a certeza, mas temos de nos questionar».

 

Medo e esperança

A ideia de ter de manter debaixo de olho a quantidade praticamente infinita de vírus, bactérias e parasitas que circula por aí parece um pesadelo. «Há cientistas que tentam fazer isso, mas creio que a boa notícia é que não temos de fazer algo tão inteligente», afirma Bernstein. «Os trajetos das doenças emergentes são os mesmos. Pode vir de um morcego, pode vir de um roedor, pode ser um primata, pode ser qualquer outra espécie. Mas envolve sempre alguém a entrar numa floresta, a trabalhar no tráfico de animais selvagens ou numa grande criação de gado, é aí que acontece. Podemos visar essas áreas e apanhar tudo», nota.

«Olhe para a quantidade de dinheiro que se gasta em lidar só com este coronavírus, que está nos biliões de dólares, sem falar nas vidas perdidas. Ao mesmo tempo, gastamos no máximo um valor na ordem dos milhares de milhões à procura de vírus, para reduzir a sua transmissão para pessoas», salienta o investigador da Universidade de Harvard. «O orçamento anual para evitar a desflorestação está à volta de uns poucos milhares de milhões de dólares. Não sabemos o suficiente sobre o tráfico de animais selvagens, mas os orçamentos, mais uma vez, são modestos. E quando pensamos nos potenciais riscos envolvidos…». «Tem havido uma doença infecciosa emergente que causa estragos reais a cada quatro ou cinco anos. Olhando para essas, teríamos de reduzir o risco de uma destas doenças surgir à volta de 1%, através de esforços para prevenir a desflorestação e o tráfico de animais selvagens, ou vigilância viral no geral, para justificar investir centenas de milhares de milhões de dólares», explica Bernstein. «A contabilidade está toda errada. Estamos a gastar enormes quantidades de dinheiro depois do facto consumado».

Fèvre concorda plenamente. «Quando decidimos mudar a maneira como os padrões de comércio funcionam, parte do processo de decisão deve ser pensar sobre as doenças. Antes de surgir o coronavírus, ninguém estava a fazer isso: estavam a vender-se animais para todo o mundo, a enviar coisas daqui para ali. Ninguém se preocupava com o que estava a fazer, numa perspetiva microbiológica, porque custa demasiado dinheiro pensar nisso», lamenta. «E quando ninguém pensa nos riscos, é aí que estes se tornam reais».

A desigualdade também entra na equação. «Algumas das doenças que conhecemos, conhecemos porque afetam milhões de pessoas, todos dias. Mas muitas delas afetam pessoas pobres, que não contribuem massivamente para a economia global e, como tal, são praticamente invisíveis. Precisamos de estudar esses problemas negligenciados, para depois perceber como pode ou não explodir, para se tornar num problema global», explica. «Se as vítimas forem uma mão cheia, numa aldeia algures, a maioria das vezes as pessoas não querem saber. Mas deviam estar a prestar atenção, porque se isso escapar dessa aldeia, toda a gente está em risco».

Não é só o desconhecido que é um problema, atenção. «As doenças com que nos preocupamos mais, como estirpes de influenza com origem animal, por exemplo, esse riscos não desapareceram. Mesmo depois de respirarmos fundo, após o fim da covid-19, seja ele qual for, essas outras coisas estão por aí. O perigo de uma nova pandemia é tão alto como era em novembro do ano passado», avisa o professor.

Mas há uma nota de esperança na sua voz. «Por causa da covid-19, toda a gente está mais desperta para estes problemas. Talvez isso faça com que risco seja menor, que haja mais esforços, porque não queremos que aconteça outra vez»