Bispo Vermelho. O padre que defendeu os indígenas

Foi uma das grandes figuras da religião no Brasil com a sua doutrina de apoiar os desfavorecidos a colocar por inúmeras vezes a sua vida em perigo. O Bispo Vermelho morreu no passado sábado, aos 92 anos, deixando para trás uma vida dedicada aos outros.

o longo da vida de Pedro Casaldáliga, o padre catalão radicado no Brasil desde 1968 e também conhecido por Bispo do Povo ou Bispo Vermelho, existiu algo que se manteve sempre presente. A sua dedicação em auxiliar o próximo.
Defendeu os direitos dos povos indígenas sem praticar o colonialismo, defendeu os camponeses sem terras e opôs-se aos ao capitalismo agressivo dos grandes latifundiários, à extrema-direita praticada pelo regime militar e, mais recentemente, reavivada por Bolsonaro. E, em certas ocasiões, até fez frente ao Vaticano.

A sua luta chegou ao fim no passado sábado, dia 8, quando faleceu devido a problemas respiratórios. Tinha 92 anos e estava enfraquecido depois de anos a viver com a doença de Parkinson.

Durante a sua vida foi conhecido pela sua humildade e na sua morte vai manter esta postura, com o seu corpo a ser sepultado num cemitério onde estão enterrados índios e empregados de fazendas.

 

Contra tudo e contra todos

Pedro Casaldáliga nasceu a 16 de fevereiro de 1928, em Barcelona, no seio em uma família de agricultores. Foi ordenado sacerdote em 1952 e partiu em missão para o Brasil, para São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, em 1968, durante a ditadura militar, trocando assim o General Franco pelo Marechal Costa e Silva.

Nesta zona, com 600 habitantes, encontrou uma região repleta de problemas sociais, como o analfabetismo, crime e pobreza. A Folha de São Paulo recorda que no seu primeiro dia em São Félix da Araguaia, Casaldáliga encontrou, em frente a sua casa, quatro bebés mortos, dentro de caixas de sapatos, para que fossem enterrados. "Ou vamos embora daqui agora mesmo, ou nos suicidamos ou encontramos uma solução para tudo isto", terá dito o missionário ao seu companheiro, Manuel Luzón, segundo a biografia Descalço sobre a Terra Vermelha, citou a Folha de São Paulo, que explicou que os primeiros anos do Padre nesta terra foram passados a conhecer melhor a pobreza e a aprender a desenrascar-se. Por exemplo, em algumas cerimónias religiosas, na falta de hóstia e vinho, servia aos crentes cachaça e bolachas.

Casaldáliga ficou conhecido pelos seus textos de denúncias. O primeiro, Escravidão e Feudalismo no norte de Mato Grosso, denunciava a situação da região. Já num dos seus textos mais conhecidos, Uma Igreja da Amazônia em conflito com o Latifúndio e a marginalização social, denunciava os grandes proprietários, que fizeram com que fosse chamado de comunista e que recebesse inúmeras ameaças de morte.

Em 1971, foi nomeado pelo Papa Paulo VI bispo prelado de São Félix do Araguaia. Neste cargo, ao lado de outros padres espanhóis, defendeu os povos indígenas, ameaçados pela violência dos conflitos agrários e pela expansão dos latifúndios na região.

Esta sua intervenção fez com que o Bispo recebesse inúmeras ameaças de morte. Em 1976, em Ribeirão Cascalheira, Casaldáliga dirigiu-se até à esquadra, acompanhado pelo padre João Bosco, para defender duas mulheres que estavam a ser agredidas por dois polícias. Depois de uma acesa discussão, Bosco ameaçou denunciar os polícias às autoridades e acabou por ser assassinado com um tiro na nuca. Dez anos depois deste acontecimento, foi construído neste local o Santuário dos Mártires da Caminhada. Em Mato Grosso, as cerimónias em honra ao padre tiveram início neste local.

Pedro Casaldáliga foi, por cinco vezes, alvo de processos de expulsão do Brasil durante a ditadura militar, valendo-lhe a defesa do Papa Paulo VI, com quem manteve uma relação complicada devido à ligação do bispo ao comunismo.
Ainda em 2012, já depois de ter renunciado o cargo de bispo prelado, graças ao apoio que prestou aos índios xavantes, fez com que as ameaças de morte regressassem e foi obrigado a abandonar a sua casa em São Félix do Araguaia.

O final da sua vida ficou marcada pela doença de Parkinson que deixou o bispo bastante fragilizado, mas nem por isso quebrou a sua veia moral. 

No final de julho do presente ano, assinou, juntamente com 150 outros bispos brasileiros, uma carta aberta ao presidente Jair Bolsonaro, criticando a sua "incompetência" e "incapacidade" para da pandemia gerada pela covid-19.

 

Homenagens

Depois da notícia da sua morte foram organizados vários eventos em honra do Bispo Vermelho. O Cine Teatro Cuiabá organizou uma temporada cultural online, de forma a prevenir o contágio da covid-19, com os fundos a reverterem de forma solidária para a lura contra o vírus. Um dos destaques é a peça de teatro Fica Pedro!, uma homenagem à vida do Bispo.

Grandes figuras políticas também prestaram homenagem a Casaldáliga, nomeadamente a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff. "Toda sua vida foi de luta por Justiça Social e em defesa dos mais humildes. Um homem de fé e de perseverança. Um homem de esperança em meio à injustiça que envergonha a todos que lutam por dias melhores", escreveu no seu Twitter, plataforma que também foi usada por outro ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, para homenagear o falecido. "Nossa terra, nosso povo perde hoje um grande defensor e exemplo de vida generosa na luta por um mundo melhor, que nos fará muita falta", podia ler-se na conta do político.

Frei Xavier Plassat, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ressalvou as qualidades humanitárias e a coragem do Bispo. "Ele conseguiu, pela denúncia intrépida e pelo testemunho arriscado, pela profecia inconveniente, pela poesia cortante, pela mística e pela espiritualidade que encarnava, contagiar a muitos e muitas. Contagiar a nós da CPT, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dos movimentos sociais, lutadores por um outro mundo justo, fraterno e possível".

Para além do seu trabalho religioso e humanitário, Casaldáliga também era conhecido por escrever poesia. Num artigo escrito por Leonardo Boff, teólogo, filósofo e amigo de Pedro Casaldaliga, sobre o estilo de poesia do Bispo, Boff cita os versos onde o seu amigo imaginava um encontro com Deus no final da sua vida. "Ao final do caminho me dirá / E tu, viveste? Amaste? / E eu, sem dizer nada, / Abrirei o coração cheio de nomes".