O Projeto Porter

Contrariamente ao que por vezes se diz, o Prof. Porter não veio a Portugal defender a aposta exclusivamente nos setores industriais tradicionais. Mas veio defendê-los, chamando a atenção para aquilo que eu, como ministro da Indústria, andava a dizer enfática e sistematicamente, mas que, dito em inglês, por um Professor americano, tem outra ressonância… 

Por Luís Mira Amaral

Engenheiro e economista, ex-ministro da Indústria e Energia (1987-95)

Em 1992, o meu colega e amigo, Luís Todo Bom, organizou no Fórum Picoas, uma conferência sobre a aplicação do modelo Porter ao turismo e ao têxtil e vestuário, tendo-me convidado para assistir. Eu, antes de entrar para o Governo, tinha ensinado Economia Industrial na Faculdade de Economia da NOVA, a atual NOVASBE, e conhecia os livros sobre competitividade do Professor Porter, então um reputado guru nesta área, e os seus conceitos do losango (’diammond’), modelo das cinco forças competitivas e ‘clusters’.

No final desta conferência, que muito apreciei, o Luís Todo Bom perguntou-me: «Porque não aplicas o modelo Porter à economia portuguesa?». Achei a ideia excelente e comecei a trabalhar nela. Convidámos o Prof. Porter e lançámos o desafio a um conjunto de empresas privadas e públicas para financiarem o trabalho e colaborarem na discussão sobre o mesmo, tendo-se formado um Comité de Acompanhamento presidido pelo Prof. Bayão Horta.

O Prof. Porter veio então a meu convite com a sua equipa de consultoria, a Monitor, aplicar o modelo Porter à economia portuguesa: foi um momento raro de grande interesse mediático pelo estudo, tendo o mesmo captado o grande interesse não só das empresas em particular como também da sociedade portuguesa em geral. A discussão económica em Portugal deslocou-se da macroeconomia, onde infelizmente estava muito centrada, para o campo da microeconomia, focando-se nos aspetos da competitividade empresarial e das politicas públicas que deviam ser implementadas para apoiar essa competitividade.

Entrou então na abordagem económica em Portugal o conceito de ‘cluster’ definido como um conjunto de empresas, associações empresariais, universidades e centros de investigação, institutos públicos e organismos de apoio à atividade económica e empresarial que colaboram e cooperam entre si numa dada região com vista a torná-la num verdadeiro sistema de inovação com empresas competitivas à escala global. Como será fácil de perceber, este conceito de ‘cluster’ aplicado em várias partes do globo veio dar origem a verdadeiras regiões do conhecimento muito competitivas e altamente dinâmicas e inovadoras, como aconteceu na industrialização chinesa.

Este conceito de ‘cluster’ pelas sinergias criadas entre os vários atores que operam e cooperam numa dada base regional tem efeitos dinâmicos muito interessantes em termos de vantagens competitivas sustentáveis, enquanto o conceito de setor de atividade económica ou industrial não tem esses efeitos sinergéticos, sendo antes uma mera abordagem estatística com agregação de empresas pertencentes a um dado setor de atividade.

Contrariamente ao que por vezes se diz, o Prof. Porter não veio a Portugal defender a aposta exclusivamente nos setores industriais tradicionais. Mas veio defendê-los, chamando a atenção para aquilo que eu, como ministro da Indústria, andava a dizer enfática e sistematicamente, mas que, dito em inglês, por um Professor americano, tem outra ressonância… Com efeito, não há setores obsoletos, há sempre em cada setor, empresas viáveis e competitivas e outras que se atrasam, se tornam obsoletas e acabam por desaparecer e chamar-lhes setores tradicionais, significa apenas que fazem parte da nossa tradição industrial, importando conjugar para a sua competitividade a tradição e a experiência que temos nessas atividades com a inovação e a criatividade para termos a ‘uniqueness’ que é fonte de vantagens competitivas sustentáveis. Assim sendo, era óbvio que se devia fazer uma aposta, transformando em verdadeiros ‘clusters’ o calçado, o têxtil, vestuário e confeções, os vinhos, o turismo, a madeira e mobiliário, a metalomecânica. O grande sucesso exportador na fase antes da covid, do calçado, do têxtil, vestuário e confeções, da madeira e mobiliário, da metalomecânica mostra de forma evidente a validade da continuação da aposta portuguesa nestas atividades.

Importa aqui referir, o exemplo do calçado, setor com o qual muito gostei de trabalhar. Este setor teve uma vantagem em relação aos têxteis que foi o facto de só ter uma associação, a APICCAPS, muito dinâmica e esclarecida. Desde o meu tempo de governo, que se começou a desenhar a dinâmica vitoriosa do calçado, ao escolherem para exportar apenas mercados ricos com alto poder de compra. Ao fazerem-no, abandonaram, obviamente, o modelo de competirem só através do preço, ou seja dos salários baixos, e por isso, o calçado português é hoje nos mercados internacionais, o que tem os preços mais caros a seguir aos italianos, ou seja os clientes dos mercados globais estão já a pagar um interessante prémio pela qualidade percebida do nosso calçado. Os têxteis, vestuário e confeções tiveram grandes problemas, mas felizmente reduziram o número de associações e têm vindo a emular o modelo de competitividade do calçado.

Na altura, tinha alguns amigos no Partido Socialista, que me diziam que a minha politica industrial era pouco ousada, ou seja pouco ‘modernaça’… Eles apenas pensavam na eletrónica, no silício e nos modelos de Sillicon Valley, como portadores de futuro… Também era preciso pensar em novas coisas, como fizemos, mas convinha não esquecer essas atividades tradicionais e dar-lhe a ‘uniqueness’. Aliás, em 1995, quando saímos do Governo, o relatório do Banco de Portugal, mostrava que, pela primeira vez, as exportações das novas atividades industriais em Portugal, material de transporte, incluindo componentes e automóveis, máquinas elétricas e não elétricas, tinham ultrapassado as exportações dos ditos setores tradicionais. Afinal, a nossa política industrial, capacidade empresarial portuguesa e o Investimento Direto Estrangeiro estavam a alterar o perfil da nossa especialização produtiva.

Em termos de políticas públicas horizontais, no Relatório Porter, escolheram-se cinco áreas de intervenção: a educação, o financiamento, a gestão florestal, a capacidade de gestão, a ciência e a tecnologia.

Eu tinha consciência que não bastava fazer um relatório. Era preciso criar ‘task forces’ para implementar no terreno as recomendações do Relatório Porter. Criaram-se então essas ‘task forces’ entre o Ministério da Indústria, as associações empresariais, empresários, gestores, académicos e especialistas para fazer a tal implementação. Tudo isto iria ser coordenado pelo Fórum para a Competitividade, instituição então criada numa concertação estratégica entre o Ministério e o setor privado.

Infelizmente, veio depois o Governo socialista, do meu amigo António Guterres, o mais brilhante aluno que eu tinha tido no IST, que resolveu não apoiar o Fórum para a Competitividade, acabando na prática com a possibilidade de se implementar o Relatório Porter. As políticas horizontais foram esquecidas e os ‘clusters’ criados avançaram por si graças ao mérito do setor privado. O país estaria bem melhor se se tem continuado. Porter veio a Portugal dez anos depois a convite do Diário de Noticias e do Diário Digital e conclui que o país pouco tinha avançado. Tinham-se perdido dez anos.
Posteriormente, um governo socialista veio a recuperar o conceito de ‘cluster’, chamando-lhe Polos de Competitividade, versão francesa dos ‘Poles de Competitivité’.
Agora, o atual Governo, quer e bem, nas Grandes Opções do Plano, realizar um «estudo de atualização do Relatório Porter». Tal não me surpreende, porque ouvi do ministro da Economia Siza Vieira, o grande interesse que ele tinha pelos ‘clusters’ e porque o ministro do Planeamento Nelson de Sousa fez parte no Ministério da Indústria do escol de altos dirigentes que me ajudou a desenhar e a gerir o PEDP, conhecendo bem a metodologia Porter.

Sou o primeiro a compreender que o Governo o queira fazer, tendo em conta atividades emergentes, como as baterias, pois que temos em Portugal um recurso que convém explorar, o lítio, e cuja janela de oportunidade está ligada ao prazo de viabilidade da tecnologia de ião-lítio para as baterias, seja para o veiculo elétrico seja para aplicações estacionárias. Nesse contexto e no âmbito da ‘Aliança Europeia para as Baterias’ importará tentar reforçar a cadeia de valor do lítio em Portugal na sequência da sua extração.

Não se trata agora, na minha opinião, de fazer um novo estudo, mas sim, de aplicar a metodologia Porter à indústria portuguesa no âmbito de um programa de reindustrialização financiado pelo Programa de Recuperação e Resiliência que o Governo está a montar. Na reflexão estratégica, que tive oportunidade de dirigir, como presidente do Conselho da Indústria da CIP, e que deu origem ao texto ‘O Conceito de Reindustrialização, Indústria 4.0 e Política Industrial para o Século XXI – O Caso Português’, nós propúnhamos «continuar a fomentar o agrupamento dos setores industrias em ‘clusters’, levando ao adensamento das relações intraindustriais, dinamizando os ‘clusters’, ligando universidades, institutos politécnicos e centros de investigação com empresas e respetivas associações empresariais nos vários setores da indústria portuguesa».

Vale a pena, então, nesse programa, apoiar o ‘upgrade’ tecnológico dos ‘clusters’, já ligados aos setores tradicionais, atrás referidos, mas também apoiar os novos ‘clusters’ tecnológicos, em que o pais já tem uma base razoável: materiais, biotecnologia, tecnologias de informação e comunicação, saúde e ciências da vida, aeronáutica, espaço e defesa e mobilidade no qual deverá estar integrado o lítio e a sua cadeia de valor com vista à produção das baterias.
Os sistemas de incentivos a montar no âmbito desse programa de reindustrialização devem então privilegiar e apoiar esses ‘clusters’, focados na capacidade de mobilizar setores para trabalharem neste modelo cooperativo e numa lógica de inovação aberta (’open innovation’).