A arquitetura de paisagem é trabalhar com um corpo vivo… Como no ballet – tem movimento, tem dinâmica, portanto trata-se de compreender a dinâmica da vida, não de construir um cenário para bilhetes postais, nem um cenário para dizerem ‘vamos vender este edifício que tem uns arranjos exteriores tão à moda’». Dizia-o Ribeiro Telles numa entrevista concedida à RTP2 em 2003, ano em que em Évora se fazia a exposição retrospetiva A Utopia e os Pés na Terra, que assinalou os 50 anos da sua carreira. Uma carreira longa como foi a sua vida – Gonçalo Ribeiro Telles morreu na quarta-feira em Lisboa, na sua casa, aos 98 anos – e que começou quando a profissão não existia sequer ainda. Quando no seu cartão de visita se apresentava como engenheiro agrónomo «com curso livre da arquitetura paisagista». Não se estranha daí que seja tido como o pai da disciplina da arquitetura em que se cria paisagem a partir desses corpos vivos, nas palavras que usava. Que além de político monárquico, outra das vertentes pelas quais se destacou na vida pública nacionais, Portugal o tenha o seu mais relevante arquiteto paisagista.
Mas não apenas nacionalmente foi reconhecido. Em 2013, 60 anos depois de iniciada a sua carreira, foi distinguido com o Prémio Sir Geoffrey Jellicoe, a mais relevante distinção de arquitetura paisagista a nível internacional, destinada a «reconhecer um arquiteto paisagista cuja obra e contribuições ao longo da vida tenham tido um impacto incomparável e duradouro no bem-estar da sociedade e do ambiente, e na promoção da profissão», que lhe foi atribuída em Auckland, na Nova Zelândia, pelos seus pares, através da Federação Internacional dos Arquitetos Paisagistas.
Mais de 3 mil projetos
«A paisagem sempre foi cultura», dizia. Mas sabia bem Ribeiro Telles como não era cultura apenas. Como era também política, e esses dois mundos uniu-os pela ativismo ecológico. Ao longo dos anos, muito antes de o país se ver confrontado com essa realidade pelo choque das vidas perdidas no grande incêndio de Pedrógão, que vinha alertando para o problema das florestas (também elas paisagem) portuguesas: «Os incêndios surgem por causa de os povoamentos serem monoespecíficos, quer dizer, serem de uma só espécie, alastrando assim com facilidade a manchas muito grandes», repetia-se em 2012 à agência Lusa. Mas preocupava-o também a forma como se gerem, planeiam e ordenam no território as cidades. Fazia uso dos frescos de Ambrogio Lorenzetti, no Palácio Comunal de Siena, do século XIII, para melhor se fazer entender quando falava de «Bom Governo» e «Mau Governo», comparando duas imagens: a de uma cidade de portas abertas, e abertas para o campo, em comunicação com ela, com circulação de pessoas nos dois sentidos; e a dessa mesma cidade de portas fechadas, com as representações da crueldade, da traição, da maldade, da vã glória e da soberba em torno de um tirano. Ainda sobre as cidades, na mesma entrevista à RTP2, conduzida por Raquel Santos:«Sou contra a inauguração de parques, jardins, espaços verdes». Espaços que, a seu ver, devem estar sempre a inaugurar-se, em gesto contínuo. «Se não, não passam de cenários, envelhecem e somem-se».
E vamos aos seus, os da sua autoria ao longo de uma carreira em que assinou milhares de projetos – na exposição que lhe foi dedicada em Évora em 2003 dava-se conta de mais de 3 mil projetos assinados -, entre os quais se contam os incontornáveis jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (Prémio Valmor em 1975, partilhado com Viana Barreto, coautor do projeto), que no seu vocabulário tiveram sempre uma outra designação.
«Proponho aos visitantes olharem para aquilo não como um parque, não como um jardim, mas como paisagem – para eles, que é deles», dizia. «E como paisagem tem de tirar o maior partido das potencialidades do lugar. Uma das potencialidades que ali se pode notar e ver é o correr das estações. Gostaria muito que o jardim, o parque – chamemos-lhe o que quisermos –, que a paisagem tivesse umas características na primavera que não tem no verão, e que o inverno fosse o adormecimento daquilo para se sentir depois o renascer da primavera. Se conseguirmos ater todos esses andamentos – tem muito a ver com a música, parece que aquilo cria um movimento e que as pessoas vão-se apropriar muito mais facilmente. Que bom é ter umas clareiras ao sol no inverno! Que bom que é ter uns espaços fresquinhos para o verão, ensombrados».
Além desses jardins, um dos marcos da paisagem lisboeta, foi também Ribeiro Telles o autor (ou coautor) de projetos como o Jardim Amália Rodrigues, no Parque Eduardo VII, a Mata de Alvalade e o Bairro das Estacas, o Corredor Verde de Monsanto, o jardim da Capela de São Jerónimo, o Vale de Alcântara, todos ele em Lisboa, ou, fora da capital, a Mata dos Medos, em Almada, ou o Vale das Abadias, na Figueira da Foz. Também em Lisboa, projetou com Pulido Garcia os também emblemáticos jardins do Castelo de São Jorge. Estava-se no ano de 1959 e esse era um dos primeiros projetos de arquitetura paisagista a serem concretizados em Portugal.
Lisboa, a cidade onde deixou a sua maior marca – foi um dos principais responsáveis pelo desenho das suas áreas verdes, que lembrava também a espaços faltarem à cidade;apontava-o como uma das razões para a facilidade com que frequentemente ocorrem na capital -, foi a cidade onde nasceu (embora a família tivesse raízes em Coruche, onde passou grande parte da juventude), a 25 de maio de 1922. Numa altura em que a Arquitetura Paisagista não existia enquanto disciplina, licenciou-se em Engenharia Agrónoma pelo Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, que complementou com um curso livre em Arquitetura Paisagista. Na mesma instituição, começou a lecionar como assistente de Francisco Caldeira Cabral, com quem publicou A Árvore em Portugal, obra de referência sobre as espécies arbóreas autóctones portuguesas. Pela mesma altura, iniciava a sua carreira nos serviços da Câmara Municipal de Lisboa, onde integrou inicialmente, entre 1951 até 1953, a designada Repartição de Arborização e Jardinagem, passando em 1955 a arquiteto paisagista do Gabinete de Estudos de Urbanização então dirigido pelo engenheiro Guimarães Lobato onde se manteve até 1960. Entre 1971 dirigiu enquanto arquiteto paisagista o Setor de Planeamento Biofísico e de Espaços Verdes do Fundo de Fomento da Habitação.
Foi professor catedrático convidado da Universidade de Évora, e responsável pela criação das licenciaturas em Arquitetura Paisagista e em Engenharia Biofísica.
Política e distinções
No campo político, iniciou a sua intervenção pública como membro da Juventude Agrária e Rural Católica, estrutura juvenil ligada à Acção Católica Portuguesa, e destacou-se na intervenção pública contra o regime salazarista nas sessões do Centro Nacional de Cultura, a cuja assembleia geral presidiu até ao fim da vida. Ainda a ditadura estava longe de terminar, com Francisco Sousa Tavares fundou, em 1957, o Movimento dos Monárquicos Independentes, que daria origem ao Movimento dos Monárquicos Populares que viria apoiar a candidatura presidencial de Humberto Delgado. Em 1959, foi um dos signatários da ‘Carta a Salazar sobre os serviços de repressão’ e em 1967, ano de grandes cheias em Lisboa, criticou publicamente as políticas de urbanização vigentes. Ainda no Estado Novo aliou-se a Mário Soares quando integrou a Comissão Eleitoral Monárquica que se junta às listas da Acção Socialista Portuguesa na coligação Comissão Eleitoral de Unidade Democrática para concorrer à Assembleia Nacional; depois do 25 de Abril, a Francisco Sá Carneiro na formação da Aliança Democrática, coligação através da qual foi eleito deputado à Assembleia da República nas legislativas de 1979, 1980 e 1983. Depois de ter desempenhado funções de subsecretário de Estado do Ambiente nos primeiro, segundo e terceiro governos provisórios após o 25 de Abril (altura em que foi um dos fundadores do Partido Popular Monárquico) e de secretário de Estado para a mesma pasta no I Governo Constitucional de Mário Soares, em 1981 foi chamado por Francisco Pinto Balsemão para integrar o VIII Governo Constitucional como Ministro de Estado e da Qualidade de Vida. A esses seus anos de governação se deveram a criação das zonas protegidas da Reserva Agrícola Nacional, da Reserva Ecológica Nacional e as bases para o que seriam os planos diretores municipais. Enquanto deputado, teve uma importante intervenção em propostas legislativas como a da Lei de Bases do Ambiente, a da Lei da Regionalização, a da Lei Condicionante da Plantação de Eucaliptos, a da Lei dos Baldios, a da Lei da Caça e a da Lei do Impacte Ambiental. Foi condecorado diversas vezes por diferentes Presidentes da República. Em 1969, recebeu o grau de Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 1988, Mário Soares agraciou-o com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e em 1990, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. A lista de distinções que lhe foram atribuídas é longa – e viveu ainda o suficiente para ver ser criado um prémio de Arquitetura Paisagista com o seu nome, que distinguiu no início deste ano na sua primeira edição Teresa Andresen. Marcelo Rebelo de Sousa, o último Presidente a distingui-lo, ainda há três anos, com a grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique, dizia então o óbvio:que Portugal tinha «uma dívida de gratidão» para com Gonçalo Ribeiro Telles. Continuará a ter. Porque entre o seu legado deixou-nos também pensamento para o futuro. «Tudo começou na horta, passou da horta para a quinta de recreio e passou da quinta de recreio para o parque», dizia na viragem do século sobre o que estava para trás. «Hoje a humanização do território é de tal ordem que vamos passar para a paisagem, tudo isto vai resolver-se através da paisagem para as pessoas do século XXI».