Proponho nesta minha intervenção, sensibilizar os decisores e atores que intervêm no património, com um conjunto de recomendações, incidindo no planeamento estratégico de políticas para a Conservação e Reabilitação do Património
Pretendo contribuir, com um trabalho que desenvolvi e coordenando também a colaboração de um grupo de especialistas destas áreas, para uma melhoria significativa e definitiva das competências a considerar nesta matéria.
A natureza única e insubstituível do património cultural imóvel exige planeamento nas intervenções e uma visão que assegure que tão importante recurso permaneça para futuras gerações. Sendo um bem público não renovável, a sua preservação e valorização são responsabilidade da sociedade no seu conjunto, incluindo as esferas políticas, jurídica e administrativa, para além das comunidades que o detêm. Pelo que se torna imperiosa a identificação exaustiva e metódica dos edifícios com valor patrimonial e dos seus proprietários, ou responsáveis pela sua gestão, e a definição e caracterização sistemática do estado de conservação destes edifícios, bem como a promoção da qualificação e transferência de conhecimento entre todos os intervenientes.
Metodologia de intervenção no património
Os organismos responsáveis pela gestão do património edificado, sejam eles de cariz particular e/ou público, são, em última instância, os principais e últimos responsáveis pelas intervenções realizadas no património, bem como pelo seu uso (devido ou indevido) ou mesmo o seu abandono. Qualquer intervenção no património edificado deve ser devidamente ponderada e enquadrada num cenário de médio/longo prazo, através de programas de uso sólido e duradouro e orçamentos responsáveis.
A preservação das estruturas existentes, para além de contribuir para a identidade dos imóveis, traduz-se, ainda, em sustentabilidade com ganhos ambientais e económicos. Mesmo considerando que os custos da execução dos reforços necessários à garantia da estabilidade estrutural de uma construção são idênticos aos da execução de uma nova estrutura, a análise económica final será sempre vantajosa à manutenção da estrutura existente. Os volumes da demolição e o seu transporte a vazadouros são consideravelmente menores, revelando-se numa economia do ponto de vista ambiental (traduzida numa diminuição global da produção de CO2).
O património edificado tem sido frequentemente alvo de demolições, totais ou parciais, e de alterações profundas à sua forma, estrutura e aspeto. Embora estas ocorrências façam parte da evolução, o modo como estas ocorrem evidencia falha no cumprimento das melhores práticas no âmbito da gestão de património e na garantia da sua segurança estrutural, em particular, no que se refere à ação sísmica.
O desempenho face à humidade tem de ser uma das preocupações maiores, pois a água, quer no estado líquido quer no estado vapor, é um dos principais fatores de degradação do património. A elaboração de estudos higrotérmicos, suportados na monitorização e simulação numérica, fazem parte de uma abordagem indispensável antes de obras de reabilitação, conservação e restauro.
Planeamento, gestão do projeto e formação e qualificação dos atores
As intervenções no património edificado exigem uma coordenação por entidades e empresas especializadas na avaliação do seu estado, das prioridades, dos recursos financeiros disponíveis, da capacidade de recursos humanos profissionais com saberes adequados em engenharia e arquitetura. O sucesso só é conseguido quando se dispõe de programas, anteprojetos, projetos de execução e estimativas de custo muito detalhadas. São ainda essenciais equipas multidisciplinares que saibam integrar os valores patrimoniais com as necessidades atuais, incluindo engenheiros, arquitetos, arqueólogos, historiadores, conservadores e restauradores, entre outros.
As principais preocupações na área da formação e qualificação refere-se ao envolvimento nas intervenções sobre o Património Cultural Construído de agentes sem qualificação e experiência mínima na elaboração de diagnóstico, inspeção e ensaios, projeto, fiscalização e execução e à carência de uma visão multidisciplinar (arquitetura, engenharias, paisagismo, conservação e restauro, arqueologia, história da arte, etc.).
O projeto deve estabelecer todos os detalhes, materializado no caderno de encargos, preferencialmente exigencial, mapas de trabalhos e quantidades, desenhos gerais e de pormenor. O orçamento terá de ser elaborado por medidores e orçamentistas especialistas com preparação específica e conhecedores dos métodos construtivos e das particularidades destas intervenções. Na obra é indispensável que às empresas de construção seja exigida uma qualificação específica. Não pode ficar resumida aos alvarás existentes para as construções novas (mesmo esta é insuficiente, como sabemos). Trata-se de uma especialização que ainda não foi regulamentada, o que permite que até em obras particulares não seja exigida qualquer qualificação adequada com todas as piores consequências.
Embora na área da Conservação e Restauro os técnicos tenham formação adequada e sejam prestigiados, há dificuldade em assegurar continuidade, devido às remunerações pouco atrativas, em função dos preços das obras, o que tem desmotivado vários técnicos, que procuram outras profissões e há falta de articulação interinstitucional e interdisciplinar que garanta a eficácia da implementação de medidas atempadas para a preservação do património, de interoperabilidade entre os diferentes intervenientes na reabilitação;
Por outro lado, deve promover-se a criação de estratégias de apoio à preservação dos saber-fazer tradicionais (escolas profissionais), nomeadamente, para os trabalhos da pedra, do ferro, da madeira, do gesso, da pintura mural, da construção em terra e em alvenaria, entre outros, que vão sendo perdidos face à rutura da cadeia de transmissão do conhecimento tradicional a que se assiste em toda a Europa.
Riscos para o património
O património edificado está sujeito a inúmeros riscos que põem em causa a sua preservação com critérios de autenticidade e integridade. A destruição do património conduz à perda de identidade e do sentido de pertença aos locais e aos grupos comunitários, traduzindo-se frequentemente na perda da qualidade de vida das populações.
Pode afirmar-se que os riscos mais relevantes para o património edificado são os antrópicos – uso inadequado das construções, a falta de qualidade das intervenções – qualificação inadequada dos atores (projetistas, empresas e mão de obra), tempos muito curtos das intervenções com deficiente definição dos trabalhos. Em muitos edifícios reabilitados foram removidos todos os elementos arquitetónicos e decorativos e completamente alterada a sua tipologia. Refira-se ainda a falta de investimento na manutenção contínua e a massificação do turismo, bem como intervenções desajustadas desrespeitando a preexistência.
Recomendações – proposta de medidas
As principais recomendações deste documento de reflexão podem ser traduzidas em 10 medidas:
1. Todos os ‘patrimónios’ devem ser contemplados num plano estratégico para a Conservação e Reabilitação (2020-2030), a saber: cultural edificado, corrente, industrial do século XX. Propõe-se a criação de um inventário do património edificado detalhado, que tenha em consideração uma avaliação dos métodos construtivos e do estado de conservação. O inventário complementar terá de contemplar o levantamento, mapeamento e a caracterização do grau de conservação/degradação e estar disponível numa plataforma acessível a todos;
2. Identificação das entidades que gerem o património, isto é, quem tem a responsabilidade no investimento associado à sua reabilitação, conservação e manutenção (entidades públicas, privadas ou mistas);
3. Criação e implementação um modelo de inspeção do património edificado que quantifique e qualifique as condições de segurança, conforto, acessibilidade, instalações disponíveis e sustentabilidade;
4. Definição dos principais riscos para o património construído e das ações para os mitigar. Considera-se de crucial importância que, para além dos riscos naturais como os deslizamentos, as cheias ou os sismos, entre outros, se reflita sobre os seguintes aspetos: a) alterações climáticas; b) intervenções demasiado rápidas sem estudos aprofundados; c) uso inadequado; d) falta de qualidade das intervenções por insuficiente qualificação dos atores; e) massificação do turismo cultural que pode constituir uma ameaça às condições de equilíbrio higrotérmico e à degradação dos edifícios;
5. Promoção da transferência de conhecimento entre a academia e os diversos atores que agem diretamente no património e a publicação da informação técnica, através de uma plataforma com a participação das universidades, centros de investigação, instituições do estado central e municípios, acessível a técnicos e ao público;
6. Adoção de um modelo de ensino superior ajustado às necessidades do património construído e de formação especializada, bem como promover a qualificação profissional de todos aqueles que atuam no património, indispensável à promoção da qualidade e durabilidade das intervenções;
7. Criação de especializações no património edificado para engenheiros e arquitetos pelas respetivas ordens profissionais;
8. Elaboração de um plano estratégico nacional de intervenção e financiamento para as obras de conservação e reabilitação do património, no período 2020-2030, que inclua programas de investimento e financiamento plurianuais;
9. Clarificação do papel do investimento público na conservação e reabilitação do Património Cultural Edificado do Estado e da sua ligação com fundos comunitários e proposta de um novo modelo de incentivos ao mecenato sensibilizando os cidadãos e as empresas;
10. Sensibilização da população, em particular das camadas mais jovens, para a importância do património e para as formas como podem contribuir para a sua salvaguarda e valorização, nomeadamente através de programas nos órgãos de comunicação social generalistas.
Contributos – Alice Tavares, Esmeralda Paupério, Filipe Ferreira, João Martins Jacinto, José Borges, Leonor Medeiros, Margarida Alçada, Manuel Aranha, Ricardo Gonçalves, Victor Cóias.