Harry Houdini e o caso do estudante assassino

O médico que o abriu no dia 26 de outubro de 1926 descobriu-lhe um apêndice destruído há vários dias. Harry, o homem que escapava de todas as correntes, estava definitivamente preso pela morte, que chegou cinco dias depois. Pelo meio ficou o episódio macabro de um universitário que o esmurrou no abdómen com toda a…

Detroit, dia 26 de outubro de 1926. O_Grande Harry Houdini voltava a deixar os seus fiéis espetadores de boca escancarada, um fio de baba correndo pelo queixo. Era sempre assim a cada exibição. Ninguém ficava indiferente perante as proezas daquele que foi, para muitos, o maior mágico de todos os tempos. Mas, nessa noite, os ohs! de admiração enrolaram-se nas gargantas e transformaram-se em ohs! de angústia. Harry preparava-se para abandonar o palco quando tombou inteiriço, vítima de um estranho colapso. Cinco dias depois, estava morto. O mistério mantém-se até hoje: o que matou Harry Houdini? Procurem respostas um pouco por todo o lado. Nenhuma que encontrarem será definitiva. Quando muito, há o registo monocórdico do óbito: peritonite. Causas? Demasiado vagas.

Houdini não se chamava Houdini. Nasceu com o nome de Erik Weisz, filho de uma família judia de Budapeste, no então Império Austro-Húngaro. O pai era rabino – Mayer Sámuel Weisz; a mãe, Cecilia Steiner, deu-o à luz a 24 de março de 1874. Erik tinha um meio-irmão, Nathan, gerado na vigência do primeiro casamento do pai, e outros quatro, Gottfried William, Theodore, Leopold e Carrie Gladys. Emigraram todos para os Estados Unidos em julho de 1878, ficando Mayer Weisz responsável pelos serviços religiosos da comunidade de Apleton, no Wisconsin. Chamavam-lhe pomposamente Zion Reform Jewish Congregation. Hoje, no lugar onde a família ficou instalada existe uma praça chamada Houdini Square.

Quando os Weisz chegaram à América passaram a ser Weiss. Era mais simples e a vida que levavam não tinha nada de complicada. Nesse tempo, já um antigo relojoeiro francês, natural de Blois, tinha falecido: Jean-Eugène Robert-Houdin ficou famoso pelos seus complicados truques de ilusionismo. Por causa de Jean-Eugène, Erik resolveu ser mágico e Houdini, Harry Houdini. Devorara avidamente a sua autobiografia e ficara absolutamente fascinado pela arte da ilusão. O Harry foi buscá-lo a Harry Kellar, outro dominador de manigâncias, natural da Pensilvânia.

Em 1891, Houdini começou a subir aos palcos. Sem grande espalhafato e, pior, sem grande impacto sobre o público. Dedicava-se quase exclusivamente a truques com cartas, algo que não trazia nada de muito novo e, ainda por cima, estava sujeito a uma concorrência desbragada. Não demorou muito tempo a perceber que, apostando nos baralhos, estava condenado como mágico, a despeito de algumas críticas em relação ao seu trabalho o considerarem, de forma bastante paternalista, competente. Com a ajuda do irmão Theodore, mais conhecido pela alcunha de Dash, passou à fase de escapista. The Brothers Houdini passaram a apresentar-se com espetáculos nos quais Harry se libertava de cordas e de correntes que o deixavam completamente imóvel. Instalaram-se em Coney Island, a zona de entretenimento por excelência de Nova Iorque, e arranjaram uma assistente, Wilhelmina Beatrice Rahner, Bess de nome artístico, que depois de namorar uns meses com Dash saltou para os braços de Harry e para uma relação que conduziu ao casamento, logo seguido da dispensa do segundo irmão Houdini. Não havia espaço para mais do que um Houdini, tanto nos Estados_Unidos como na face do planeta Terra. Harry não fazia cedências quando se tratava da vaidade. Tinha para dar e vender.

 

Harry e Bess

1900 marcou definitivamente a vida de Harry e Bess, uma dupla que bem pode ter puxado pelo talento de George Gershwin 35 anos mais tarde. Apoiados por um empresário de renome, Martin Beck, já tinham atuado em todas as grandes casas de vaudeville dos Estados Unidos e seguiram em digressão para a Europa. Em Inglaterra foram recebidos principescamente, como faz parte dos hábitos britânicos mais enraizados, e, depois de uma demonstração inequívoca de como dominar por completo a arte de se ver livre de todos os tipos de algemas, levada a cabo no edifício da Scotland Yard e perante a presença dos melhores polícias daquela instituição, Houdini ganhou o direito de se apresentar no Alhambra Theatre, o famosíssimo salão de Leicester Square, durante seis meses a fio. O dinheiro começou a entrar-lhe nos bolsos em quantidades muito aceitáveis, recebendo honorários no valor de 300 dólares por semana, algo equivalente a cerca de 9 mil dólares nos dias que correm. Harry Houdini era Harry Houdini! O nome que encantava a Europa e o levou a atuar em Paris e Amesterdão, Berlim e Sampetersburgo, por quantias quase pornográficas. Na Rússia foi encerrado numa das carruagens do Transiberiano que partia de Moscovo para Vladivostoque, estando a única chave do seu cárcere depositada num banco da cidade-estação derradeira do trajeto. Houdini não demorou mais de uma hora a fugir de uma jaula, também ela rodeada de correntes, que se encontrava na dita carruagem. Percorrera pouco mais que dez quilómetros. Solto e risonho, fez uma pilhéria: «Não tenho tempo para fazer uma visita à Sibéria. Há muitos espetáculos agendados».

 

A noite maldita

Regressemos a Detroit. Ou, neste caso, adiantemos a prosa até Detroit, 1h26 minutos do dia 31 de outubro de 1926. No quarto n.º 401 do Detroit’s Grace Hospital, Harry Houdini, de 52 anos, foi considerado morto. «Estou muito cansado», tinha dito um pouco antes. «Já não me apetece lutar mais». Finalmente, uma rede invisível tinha prendido de uma vez por todas o incrível Houdini, homem capaz de se libertar de correntes e gaiolas mergulhadas no fundo do rio Hudson.

Tudo levava a crer que a peritonite declarada no óbito fora provocada por uma apendicite que Harry ignorou por completo durante semanas, apesar das dores insuportáveis que o martirizavam. Contrariando as ordens dos médicos, no dia 11 de outubro apresentou-se em Albany, Nova Iorque, onde perpetrou uma fuga magnífica de uma_cela de tortura chinesa enfiada num gigantesco aquário. Os movimentos que foi obrigado a fazer deixaram marcas indeléveis, entre as quais um tornozelo partido, o esquerdo.

Para Houdini, a adrenalina que o invadia de cada vez que inventava uma nova adversidade era insubstituível. Por isso, no dia seguinte, viajou para Montreal, no Canadá. Dessa vez, além de um show de escapismo, cabia-lhe fazer uma palestra para alunos da McGill University. Se havia algo capaz de excitar tanto Harry como uma exibição gloriosa das suas capacidades contorcionistas era a possibilidade de se expor a umas horas de gabarolice perante um grupo de jovens admiradores das suas façanhas.

Com o tornozelo a massacrá-lo em permanência, Houdini procedeu à sua preleção sentado num sofá, algo que incomodou particularmente a sua tão apregoada imodéstia. E aqui abre-se o pano sobre o mistério insolúvel da sua morte. O pormenor foi, mais tarde, contado por Sam Smilovitz, um dos mais atentos dos que escutavam as suas palavras. A dado momento, demonstrando uma certa irritação perante o pedantismo do mestre, o aluno Jocelyn Gordon Whitehead resolveu contestar o seu discurso, começando por questioná-lo em relação aos milagres de que se vangloriava e se isso não seria um desrespeito pelos verdadeiros milagres descritos na Bíblia. Houdini ficou incomodado e o diálogo acendeu-se. Jocelyn tornou-se agressivo ao ponto de pôr em causa uma das fanfarronadas com que Harry compunha as suas exibições, a de que seria completamente imune à dor na sua zona abdominal ao ponto de suportar pancadas contínuas e violentas sem sofrer qualquer tipo de consequência. Daí ao jovem o desafiar a dar-lhe uma série de murros no estômago foi um ápice. Whitehead, de 30 anos, dirigiu-se a Harry e golpeou-o com toda a força que tinha por diversas vezes. Finalmente, Houdini segurou-lhe no pulso e pôs fim à estúpida experiência, justificando que o facto de se encontrar sentado não lhe permitia fazer funcionar convenientemente os músculos abdominais. No seu testemunho, Smilovitz foi específico: «Whitehead abruptly delivered four or five terribly forcible, deliberate, well-directed blows to his stomach. Houdini was still reclined on the couch and had no time to prepare for the punches, which appeared to leave him in considerable pain». Relatórios médicos posteriores lançaram a possibilidade de terem sido esses murros de Jocelyn a provocarem a rutura do apêndice de Harry.

O incidente parecia ter sido ultrapassado sem consequências à medida que a conversa se foi desenrolando em seguida. O ambiente acalmou, Whitehead pareceu ter ficado convencido da resistência do orador e, entre perguntas e respostas, a palestra chegou ao fim. Mas, durante essa noite, o maior escapista do mundo viu-se muito atrapalhado. O estômago fervia-lhe de borborigmos, o cansaço adveio-lhe subitamente, sentiu-se prostrado e febril. No quarto do hotel onde repousava foi visto por um médico. A temperatura do corpo estava altíssima, ultrapassando os 40 graus. Mas o pobre doutor não conseguiu dissuadir o teimoso mágico de apanhar o comboio do dia seguinte para Detroit, para onde estava marcada a sua performance seguinte. Seria a última.

 

Mistério para sempre

Não restam dúvidas de que Harry Houdini foi alertado por mais do que um médico para não voltar a subir aos palcos antes de ser hospitalizado e operado ao apêndice. Não restam dúvidas de que, desprezando os conselhos clínicos, Harry Houdini teimou em continuar a trabalhar, muito provavelmente julgando-se acima dos homens normais, tal como era apresentado nos cartazes dos seus espetáculos. O mistério das verdadeiras causas da sua morte podem estar enterrados com ele no Machpelah Cemetery, em Glendale, Queens, no túmulo que exibe o emblema da Society of American Magicians, e a obstinação e o excesso de empáfia contam-se entre elas.

Depois de as cortinas se fecharem no Garrick Theatre, no final do espetáculo do Grande Houdini, o seu colapso foi definitivo. Ainda foram a tempo de lhe extraírem o apêndice que, segundo o relatório do cirurgião, estava num estado lastimável, comprovando-se a sua degradação no decorrer dos dias anteriores. A infeção inerente já se espalhara por outros órgãos. A morte cerrara as algemas em redor dos pulsos de Houdini, mas ele ainda lutou cinco dias para se libertar delas, como se habituara a fazê-lo ao longo da vida com uma perna às costas. Finalmente, desistiu. Bess estava a seu lado, como sempre. Desde o dia em que escolhera trocar Dash por Harry, fora a sua companheira inseparável.

O funeral teve lugar no dia 4 de novembro e mais de duas mil pessoas acompanharam a sua urna pelas ruas de Queens.

Muita da sua existência fora gasta numa guerra surda contra os espiritualistas, e quando, em 2005, Don_Bell publicou um livro intitulado The Man Who Killed Houdini, um rasto de incontroláveis insinuações voltou a surgir à superfície. A convicção de que os murros de Jocelyn Gordon Whitehead foram a principal causa da rutura do apêndice do mágico foi tornada pública por vários médicos que estudaram o caso posteriormente. A teoria de que Jocelyn estaria ligado à comunidade espiritualista norte-americana e que esta planeara o assassinato do membro 568 da St. Cecile Lodge da maçonaria de Nova Iorque voltou a ser exposta na biografia organizada e escrita por William Kalush e Larry Sloman, The Secret Life of Houdini, publicada em 2006: «Se devemos desconfiar que a morte de Houdini foi engendrada por alguém, então a secção de crime organizado que faz parte de um grupo de espiritualistas e médiuns fraudulentos tem de ir para o topo da lista de suspeitos».

Apesar de a morte de Harry ter sido tomada como uma série de incidentes, de tal forma que a companhia de seguros indemnizou duplamente a sua família, nunca ninguém conseguiu encontrar uma real ação dolosa de Whitehead que valesse a sua investigação. O episódio da McGill University acabou por ser macabro, e as primeiras insinuações do agressor sobre o desrespeito de Houdini pela interpretação dos milagres das_Escrituras fizeram supor que havia, da parte de Jocelyn, uma forte antipatia por Harry e pela sua exibição de membro superior da humanidade, ou algo que o valha, mas daí a atribuir-lhe a conotação de assassino, a distância é enorme, e tal foi sistematicamente afastado por outros autores que se debruçaram sobre o assunto. Quando muito, os golpes do estudante universitário serviram para agravar uma situação clínica que se ia tornando irreversível à medida que_Harry ignorava constantemente os avisos dos clínicos que acompanharam os seus derradeiros dias.

Recomposto da traição de que fora vítima por causa de Bess, o irmão de Harry, Theodore Hardeen, mais conhecido por Dash e que fora um dos Brothers Houdini, herdou os segredos da grande maioria dos seus truques, embora sob condição de vir a ser a última pessoa a ter acesso aos instrumentos e aos vários cadernos deixados escritos pela mão do grande mágico e de os destruir no momento em que decidisse, por sua vez, deixar de atuar. Mas Dash talvez não estivesse assim tão recomposto como isso, já que tratou de vender a maior parte desse espólio a outro mágico, Sidney Hollis Radner, um vendedor de tapetes que, sendo protegido de Theodore, ficou na posse de um tesouro que jamais imaginara vir a encontrar, incluindo a extraordinária cela de tortura chinesa. Radner permitiu a exposição de muitos dos artefactos utilizados por Houdini no Houdini Magical_Hall of Fame, que se ergueu junto às cataratas do Niágara durante os anos 40. Em 1995, um incêndio destruiu as instalações, fazendo definitivamente a vontade ao_Grande Houdini, o homem que sobreviveu a todas as tormentas para sucumbir a meia dúzia de murros desferidos por um mero estudante universitário numa conversa de circunstância. Talvez a sua morte não tenha sido, afinal, tão misteriosa como muitos querem fazer crer. Mas os mágicos costumam ter um jeito especial para que, em seu redor, tudo se torne estranho aos olhos dos crentes que se deixam embasbacar por poderes que parecem não ser humanos. É esse o maior dos enigmas de qualquer farsa. Mesmo as que nasciam da imaginação infinita do Grande Houdini…