Malásia. O inferno de quem produz as luvas descartáveis que usamos

As fábricas da Top Glove, que produz luvas descartáveis com que tantos profissionais de saúde salvam vidas, tornaram-se foco do surto malaio.

Nem toda a gente teve um ano mau em 2020. Para os acionistas da Top Glove, uma empresa malaia responsável por um quarto da produção mundial de luvas descartáveis, quase 250 milhões por dia, foi um ano em grande. O seu valor de mercado bateu o equivalente a 16 mil milhões de euros no verão, um salto próximo dos 400%, com lucros líquidos de quase 390 milhões de euros, mais 90 que o ano passado. Contudo, para os trabalhadores, que fabricam luvas usadas para proteger vidas por todo o planeta, foi um ano complicado. As fábricas da Top Glove tornaram-se o foco do surto de covid-19 malaio, e pelo menos um dos trabalhadores até foi despedido por o denunciar, avançou ontem a Reuters.

Não é de estranhar que os alojamentos da Top Glove – onde vivem boa parte dos seus trabalhadores, a maioria imigrantes nepaleses ou bangladeshianos, que recebem uns meros 250 euros mensais – se tenham tornado foco de doença. “As acomodações eram tão sobrelotadas”, recordou Sheikh Kibria, de 24 anos, pseudónimo de um operário de uma fábrica em Klang, nos arredores de Kuala Lumpur, cuja identidade a AFP protegeu, para evitar retaliações. 

“O quarto em si tinha apenas o mínimo absoluto. É impossível manter a limpeza quando tanta gente vive num único quarto. Era como um quartel, mas menos cuidado”, refere Kibria.

Subitamente, quando apareceu o surto de covid-19, a situação foi de mal a pior. “A empresa tinha discutido diminuir o número de pessoas nos quartos antes das infeções começarem, mas isso nunca aconteceu”, lamentou Karan Shrestha, um colega nepalês de Kibria.

A Top Glove começou a deslocar doentes para hospitais e os restantes para hotéis, mas já quase seis mil trabalhadores tinham dado positivo ao vírus nos seus dormitórios em Klang. Algo que levou a maior produtora de luvas médicas do planeta a encerrar 28 das suas 41 fábricas malaias, em novembro, afundando ligeiramente o valor das suas ações – entretanto recuperaram.

“A empresa não manteve os seus trabalhadores seguros”, acusou Shrestha. “Eles são gananciosos e estiveram mais preocupados com os seus lucros”.

 

Represálias Não foi só a sobrelotação dos alojamentos da Top Glove que que levou a acusações de negligência. Em maio, um dos trabalhadores da empresa, Yubaraj Khadka, de 27 anos, tirou fotos à entrada de uma das fábricas, onde dezenas de outros trabalhadores se apinhavam, sem qualquer distanciamento social possível – lá dentro ainda era pior, contaram vários dos seus colegas à Reuters.

Receoso de represálias caso se queixassem às chefias, Khadka enviou as fotos a ativistas dos direitos laborais no seu país natal, o Nepal, que por sua vez apresentaram a queixa à Top Glove. Meses depois, pouco antes do surto, Khadka recebeu uma carta de demissão. A Top Glove justificou que o identificara como responsável pelas imagens, através das câmaras de vigilância.

“O episódio é outro indicador de como o risco de infeção pelo vírus recaiu sobretudo em trabalhadores manuais pobres, em fábricas lotadas por todo o mundo, desde processadoras de carne a armazéns”, escreveu a agência noticiosa norte-americana.

No caso dos trabalhadores da Top Glove, parece pouco provável que possam contar com apoio das autoridades malaias. Aliás, no mês em que Khadka tirou as fotos, um relatório do ministério da Saúde qualificou as condições da Top Glove como “muito satisfatórias”.

Já a União Europeia, desesperada por luvas descartáveis, em março, até pressionou o Governo malaio a isentar as fábricas do setor das restrições devido à covid-19. A então embaixadora europeia em Kuala Lumpur, Maria Castillo Fernandez, apelou a que não só operassem com todo o pessoal, mas o fizessem 24 horas por dia, sete dias por semana, segundo a Reuters.